quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

                                                              VI


 
O Congresso Nacional não era  uma organização de hierarquia clássica. Em várias cidades, ligadas  pela pouca tecnologia utilizada (  a queda do poder de compra e  a emigração de gerações mais novas reduziu o número de utilizadores)  e por alguns entusiastas em carne e osso, formaram-se pequenos círculos inspirados pelos nomes mais sonantes de Marília .  Durio, a segunda cidade  do país,  desapareceu politicamente do mapa, se é que alguma vez lá esteve, porque os seus melhores quadros  caíram em desgraça -  viviam em quintarolas minhotas a fazer vinho ou emigraram como executivos bem pagos.
 Em Outubro de 2017 decidi que não podia mais. Os meus filhos tinham partido há quase um ano, ainda a tempo de evitar aproibição  de emigrar .  O João, o mais novo,  para o Canadá, o Miguel para Inglaterra. Eu e a minha mulher já só nos tolerávamos e a linguagem resumia-se à troca de informações sobre a vida dos miúdos. Não senti nenhum chamamento, nenhuma inclinação. A verdade foi mais simples:  não podia sair e já não conseguia ficar .





Resolvi deixar tudo no dia  25 de Outubro de 2017. Vivíamos num apartamento mais pequeno, arrendado. Uma sala, um quarto, a casa de banho  e uma cozinha. O anterior, grande e bom,  foi entregue ao banco quando o segundo dos miúdos foi embora, em Julho de 2016, mais coisa menos coisa. O costume adoptado por  casais na nossa situação foi o de partilhar apartamentos. Outros  alugavam quartos em casas de velhos sozinhos. Isto era mais do que uma opção, era um dever: não havia a possibilidade de sustentar a hipoteca de uma casa sem salários normais.    Preferimos manter a privacidade, cortando  noutras coisas.  Livros e filmes corriam de mão em mão, os qu epodiam descarregavam o material da internet. Muitas vezes passava na minha antiga rua e olhava para o prédio e para a vida  que se foi.  Em Setraga, como nas cidades  de dimensão razoável, as boas casas não ficaram vazias muito tempo. O pessoal técnico da CADE e os filhos e amigos  dos mordomos  treparam por elas  como esquilos.
 Discuti, pela centésima vez,  os termos da minha opção com a Rita, que pouco falou. Se tivesse falado seria para repetir o habitual:  Melhores tempos virão, tens de ter paciência, não podes ser assim.  O meu amigo acusava-me de inacção,  a minha mulher apontava-me um feitio inconformado. Talvez não inconformado, talvez fraco e infantil. Talvez ambos tivessem razão, talvez eu rosnasse em casa mas fosse dócil e alheado na rua. Talvez nada.
A  obsessão da Rita  com as vidas dos miúdos, com o futuro dos miudos e com o pouco trabalho que ainda tinha, preenchia-a. Nessa manhã, enquanto arrumava  a mochila, coisa que nem em adolescente  usei, senti-a na casa de banho. Quando  fui buscar a tesoura da barba, cruzámo-nos  e quase chocámos, ou chocámos mesmo,  não sei. Quando  não há distância crítica, aquela que faz com que uma pessoa, se desvie de outra , já não somos pessoas. Nem animais. Isto pode parecer um psicodrama, mas naquela altura era  a minha vida , um bom pedaço  da minha vida, que acabava sem clangor.




Tanto se lhe dava se eu ficava ou se ia. Pela minha parte, só me preocupava  com a hipótese de conseguir fazer alguma coisa. Como não podia  ir ter com os miúdos e não aguentava mais  a simulação de trabalho que tinha nem o ar que respirava em Setraga, sentia-me colado a ela.  Assim foi  melhor, as separações só são difíceis quando ainda há distância.
Ela disse-me adeus quando saiu, eu respondi, rígido, enquanto revi papeladas  avulsas  em cima da mesa da  sala.  Volto muitas vezes a esta cena, uma manhã molhada e abafada, uma despedida sem um pingo de sangue. Tento  saber se o que nos aconteceu foi  causado  pelo estado das coisas  ou se também teria acontecido se as nossas vidas  se tivessem desenrolado  como seria normal. Se tivéssemos as nossas profissões, a nossa casa, os nossos filhos  em nossa  casa, ou mais perto dela e as vidas deles entrelaçadas  nas nossas. A única conclusão a que chego  é que mesmo em épocas excepcionais  nos dedicamos  a análises vulgares.





Abandonar Rita, Setraga e o meu trabalho,  foi  abandonar algo que, por alguma razão, apodreceu. Não me custava de forma especial, nem tinha sequer o prazer  suspeito de abandonar. O país passara  a conjugar  o verbo  com eficiência. Abandonava-se a  cidade  onde se vivia, o próprio país ( antes da proibição da CADE) , qualquer trabalho monótono e  disparatado. O sentimento de abandono assentou na comunidade. É necessário recordar que os que ficaram foram os que não puderam sair.
Uns dias antes, compareci na delegação  do GASO . Tinham-me colocado numa escola primária  a dar apoio a crianças com dificuldades de aprendizagem. Havia cada vez menos crianças, por isso havia cada vez menos trabalho Trabalhava duas horas por dia, sempre de tarde, e ganhava 400 euros. Limitava-me  a ler com os garotos, a rever a tabuada e  a fazer macaquices no computador. Ninguém  se importava se eu fazia bem o trabalho. Eu também não. Aquele era o meu trabalho, se bem que eu já não soubesse qual era o meu trabalho. A situação fez-me o que fez a muita gente: obrigo  a fazer o que fosse preciso. Aqueles garotos teriam  um futuro igual ao meu, a trabalhar para o GASO,  talvez a dar aulas de apoio aos futuros  abonados.







Fui ao gabinete do vice-director, um lambe-botas  de apelido Vedia ( nunca cheguei a saber o primeiro nome), que, nos bons tempos, foi director regional  da educação, nomeado pelo partido local, tendo sucedido a um aparelhista semelhante, mas de outra filiação partidária. Quando os partidos  deram de si, corria nas tertúlias políticas a ideia de que, pelo menos, acabava o carreirismo. Engano puro. Na educação, por exemplo,  continuaram a ser nomeados indvíduos que julgavam que paideia era um palavrão. 
A secretária não estava no seu posto e por isso bati logo à porta. Mandou-me entrar. Sem me sentar, cumprimentei-o e disse-lhe que  me ia embora.
       - Não é assim tão simples .
Olhei  para  ele e arrependi-me da minha estupidez. Tinha pensado nisso.
Devia  ter ido embora sem  dizer nada.  Enquanto ele arengava sobre responsabilidade, compromisso com o futuro e outras porcarias,  revi a táctica
-       Tenho a declaração de desobrigação pronta. Enviei-a por correio electrónico e  quero saber onde deixo a versão em papel.  Não sou obrigado  a ficar.
Foi como se estivesse  a falar da metereologia. Não me ligou patavina e continuou a dizer que não, que não era assim, que depois falaríamos. E sublinhou:
-       Sabe que perde o subsídio de integração, não sabe? E que o perde por um perído  nunca inferior a cinco anos? Ou seja, ou vai roubar ou trabalhará de borla num qualquer CEREAL.

 Os CEREAL, os centros de readaptação funcional, eram agências  da CADE  que distribuiam  tarefas aos que que  não tinham nenhuma. As pessoas eram alojadas em antigas escolas, instalações de empresas desactivadas, enfim, o que estivesse  abandonado. Agradeci-lhe a projecção, larguei o papel da demissão em cima da mesa  e fui-me embora
Desde que não me chateassem, estava-me nas tintas. O que ganhava impedia-me de viver fora  do  sufoco da nova regência.  No apartamento que ia deixar já não tinha os meus livros, só não vendera  uma vintena, dormia acordado a ver televisão e  alimentava-me dos MONUCO  ( Módulos  de Nutrição Compensada) . Os MONUCO, os moluscos, como lhes chamavam, eram iguais em todo o lado.  Sete almoços e sete jantares, individuais, cada um com uma sopa de pacote, um pedaço de peixe ou carne, refrigerados, uma peça de fruta, uma embalagem de arroz ou batatas ( às vezes grão  ou feijão) pré –cozinhada.
Fosse como fosse, a ida ao GASO não tinha alterado nada e aquela manhã de Outubro cumpriu  a sua tarefa. Mochila às costas com duas mudas de roupa, dois pacotes de bolachas,   tesoura da barba, um sabonete, a escova de dentes, uma toalha e um tubo de vitaminas.  Numa bolsa  lateral enfiei  duas folhas de papel. Uma era um pedaço de uma mensagem que o meu filho mais velho, o João,  me tinha enviado há uns meses e que eu não aceitava nem compreendia:

  Claro que não volto. A mamã  pensa que sim, mas não. Impossível. Tu é que tens de dar apoio e trabalhar e viver  a tua
vida até que a situação se resolva. Não estás preso, só não podes sair do país. Aí podes fazer o que quiseres, tens muito tempo livre e pensar não custa dinheiro”. 

Precisei  de guardar estas palavras para o dia em que as pudesse  aceitar e compreender. Como muitos da sua idade, o João dividia o país. Uma metade, a que ele deixou para trás, feita pela  geração dos pais e dos avós, rançosa  e culpada. A outra, que haveria de ser feita pela geração dele, à distância, espalhada pela  Europa,  Brasil,  América, Angola, supensa e adiada. Não  o podia criticar nem aconselhar, o que era mais grave. Uma vez perguntei-lhe como era isso de fazer um país  do outro lado do mar, do outro lado da fronteira. Respondeu-me que  não sabia, mas que se os da  sua geração tivessem sucesso, podiam sempre regressar e se falhassem não prejudicariam os que  ficaram nem as gerações seguintes. O despeito estava a caminho de se tornar uma  religião monoteísta.




sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

                                                                   V




Um dos primeiros congressistas que conheci, Pino Correa, fora um famoso ex- administrador de  empresas públicas,  ex-político e ex-ministro  dos tempos de fartura. Estava já na casa dos setenta  e sabia muito. Começara no partido comunista, a seguir à revolução do século passado, e depois  aburguesou-se, ou deixou de disfarçar. Esteve no governo e acabou barão da indústria.  Agora era patriota. Gabava-se de ser um indivíduo   responsável  e era  uma das figuras principais da direcção do Congresso Nacional. À boca cheia dizia-se que  ficou para trás para colocar amigos em vários cargos da Europa rica. A idade, a saúde e assuntos familiares desaconselharam a emigração e assim ia recebendo comissões chorudas e favores de toda  a ordem.
Conheci-o em 2015, por acaso, numa visita de trabalho que fez a Setraga. Eu estava desempregado e aguardava colocação através do GASO local, mas  colaborava com  um jornal on-line, que teve vida curta,   com um nome pomposo, o Dignidade.  Trabalhávamos num pequeno gabinete dividido ao meio  por um biombo de plástico transparente, o que me permitia  olhar com saudade as pernas  até ao pescoço,  crédito a Hemingway, de Sofia, a grande animadora do Dignidade
Pino Correa  estivera de manhã numa reunião privada com quadros do Congresso, num hotel, e depois do almoço organizou-se uma conversa informal com cidadãos noutro hotel da cidade, mais barato ( oficialmente, mais prático). O pavor à cultura partidária obrigava a estas novas estratégias, mesmo que toda  a gente soubesse que Correa tinha vindo apenas para  a reunião privada da manhã e para um jantar de angariação de fundos, que se realizaria à noite.
 À hora marcada dirigi-me  ao Hotel Miranda. Estava curioso para saber quantos eram os cidadãos interessados nas teses de Correa.  À porta do hotel, alguns homens das televisões e muitos mordomos de Setraga. Aguardei e depois de entrar passeei por entre os mordomos de cálice na mão e barrigas apertadas nos fatos decentes. Já havia fotógrafos que captavam as poses dos mordomos e das suas senhoras e até  de um mordomo com o seu senhor.
 Era assim em Setraga desde o tempo anterior à Grande Crise. Uma corporação em circuito fechado, medíocre sob todos os ponto de vista. Os políticos quase analfabetos e sempre carreiristas, um punhado de gente da cultura  que escrevia livros horríveis  e poemas infantis,  mas tudo amigo do seu amigo. E dos croquetes. Fora deste círculo, a cidade teve ivda antes da Grande Crise e era uma vida que não se aperaltava para as secções sociais dos jornais locais. Nesses tempos havia teatro, escrita, fotografia, música. Agora só restavam os inúteis.
Já na sala, Correa discorria sobre a necessidade de todos fazermos  a nossa parte, e outras banalidades  repisadas, quando, vindo das últimas filas, um homem se levantou e pediu para colocar uma questão. Um dos secretários da reunião avisou logo que era altamente irregular porque o orador não tinha terminado. O homem, magro, dos seus sessenta anos, quase careca, insistiu  com uma voz doce e suplicante. A mão sapuda de Correa agarrou o microfone.
-      Faça o favor, faça o favor.
 O homem pigarreou e a sala riu-se nervosamente do nervosismo do espontâneo, mas foi com calma que o sujeito fez o seu papel.
     - Queria saber se o dr. Correa, acha melhor que o óleo do motor  seja mudado quando está quente ou quando está frio.
      Correa, um profissionalão, não se traiu, mas o secretário desatou aos berros  com o intruso. Muita gente fez o mesmo e num ápice dois seguranças  agarraram-no e expulsaram-no da sala. Levantei-me  e procurei-os nos corredores. Lá encontrei o homem, que refilava com os seguranças, assegurando que sairia pelo seu pé.  Acompanhei-o até à rua. respeitando o seu silêncio.
Já na rua , perguntei-lhe o que quisera  dizer com a história do óleo.
-      Nada de especial, é uma história, uma anedota de filósofos. Quando um anjo desceu sobre uma convenção de sábios,  autorizou uma pergunta, verdade que  em     moldes especiais, mas isso agora não interessa. O que interessa é que os filósofos  não se entenderam e o anjo partiu. Nessa altura, um velho  da última fila repetiu a pergunta que tinha proposto no início.

Tossiu e afastou-se  com pressa, de forma atabalhoada. Quando me virei percebi a causa. Pino Correa estava atrás de mim, sozinho, com um enorme charuto entre  os dedos curtos  e grossos e um sorriso de gatoa das botas. Expliquei-lhe o meu interesse enquanto jornalista ( não era bem um, mas tanto fazia ) e ele sorriu como fazia nos debates de outras eras.
-  A pergunta era sábia. Sobretudo para quem não tem ar de ter automóvel.






quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

                                                                      IV



A acusação do meu amigo era correcta. Pertenci à mole de gente que assistiu, inerme, ao desenrolar  dos acontecimentos. Fui vivendo a minha vida, tentando não perder as minhas coisas nem o meu trabalho.  Agora, à distância, esta necessidade parece-me  infantil. O meu trabalho não era nada, os meus filhos bem longe, Rita ainda mais  longe, mesmo deitando-se ao meu lado todas as noites. A cama era o túmulo do nosso casamento. A acusação era  também extravagante. Não fiz parte de nenhum grupo político, não exerci nenhum cargo, não tinha qualquer relevância. Desinteressei-me de tudo o que me dizia respeito, suponho que numa reacção alinhada com a generalidade das pessoas.
O que o meu amigo queria dizer era que eu poderia  ter feito alguma coisa. Ele fez greve uma ou duas vezes e chegou a ser detido para averiguações pela antiga polícia. Mais nada. Esses tempos não foram românticos, não houve tortura,  gente  atirada de aviões como na Argentina ou chefes maoris  com colecções de cabeças espetadas em estacas. Todos estavam cansados.  Nem ele nem eu imaginávamos o que viria a  acontecer.
A CADE instalou-se com o  vagar do bolor. O país era fácil de administrar. Com  a população reduzida a metade, o Governo Central Europeu limitou-se a enviar os fundos necessários para a sobrevivência mínima das pessoas. O Congresso Nacional tinha um jornal de pequena circulação, dois ou três sítios na internet  e uma sede  em Marília,  no edifício que fora  de uma grande fundação privada. Os seus teóricos  diziam, concordando com os radicais, que Portugal era agora  um gueto. A guetização tornou-se num termo comum, discutido nos cafés, nos autocarros, no metro que ainda funcionava. Como é habitual nos guetos, do de Veneza ao de Varsóvia, a vida corria como se o gueto não conhecesse os seus muros.
O pessoal da CADE tratava os congressistas com cortesia. Diziam que era muito importante o país conservar  um escol político  que fosse capaz de assumir a governação  quando a situação se proporcionasse. Esse escol não podia ser mais diferente - nem mais igual-  ao da  classe política do  tempo anterior à Grande Crise.  Como já não havia partidos nem eleições,  formaram-se dezenas de pequenos congressos, mais ou menos  próximos do Congresso Nacional. A designação  colava bem à ideia antipartidária e pseudo-civilista, que era agora muito bem recebida.A selecção natural funcionou e os congressos que conseguiram reunir a gente mais capaz, leia-se, melhor relacionada,  sobreviveram e cresceram. Esta gente  era, de facto, um escol e os seus melhores atributos eram culturais: os conhecimentos, as cumplicidades, a proximidade de parentesco. Num país pequeno, estes anqueos duravam séculos.
Os abonados – autodesignação irónica dos que trabalhavam para o GASO – classificavam os congressistas de mordomos.  Isto reflectia uma das  diferenças mais  vincadas, mas também  simplistas – que a sociedade  exibiu , em pleno, a partir de 2017. Os mordomos eram pessoas com rendimentos e meios que não foram, por arte  e engenho, sugados  pela Grande Crise. A chegada da CADE permitiu-lhes respirar e manter um razoável nível de vida. Os mordomos  ainda faziam férias, ainda viajavam, enfim, protagonizavam o papel normal da classe média europeia. 



terça-feira, 22 de janeiro de 2013

                                                                    III

 
Hoje é difícil acreditar, mas, nesse tempo, até à chegada da CADE, o país entrou em autogestão. Os últimos recursos disponíveis foram consumidos e novas dívidas foram contraídas, já na perspectiva da intervenção do Governo Central Europeu.
Nos anos anteriores, a partir do início de 2014, os governos  de concentração ( uma antiga designação dos tempos pós-Franco, em Espanha) sucederam-se em carrossel. Cada primeiro-ministro apostava em vencer a crise e apelava ao sentimento nacional. O estado de estupor era tal que as pessoas não chegaram a revoltar-se , salvo algumas escramuças . O mercado negro  fez a sua demonstração de força e a válvula de escape foi a emigração em massa. O país foi encolhendo: hospitais, escolas, empresas, serviços. Os que ficaram foram os que não podiam, por um motivo ou outro, sair.  Constituiram o que , mais tarde, seria definido pelos sectores radicais, de  guetizados, presos no gueto.
Até á chegada da CADE, o tempo não correu: saltou. Cada empréstimo, cada corte ou  cada família, que deixavam um velho ou crianças para trás,  marcava o ritmo sobressaltado. De certa forma, gerou-se um espírito de  pelotão de fuzilamento, porque menos gente significava menor aperto, os empréstimos  permitiam o mínimo de normalidade, os cortes já não impressionavam ninguém. Os saltos autorizavam uma espécie de ansiedade, de curiosidade doentia sobre o que  seria o fim.
 Em Julho,  Jules Bomba, no editorial de um prestigiado semanário, sintetizava o sentimento da população mais instruída. Guardei o recorte de velho papel:


“ Acabou. Do país ficou o território, as casas e as memórias. Foi-se tudo o que construímos e tudo o que desperdiçámos. Agora resta-nos viver a pão  e laranjas, conquanto que haja laranjas”.

Bomba, um jovem assistente universitário de direito, tinha sido comentador televisivo e colunista durante os anos da derrocada. A sua cara de doninha e opiniões firmíssimas começaram a ser familiares.  Relacionou-se com as  figuras do poder até à altura de cortar os laços. Depois ficou mais um coveiro.
É impossível sumariar todos aspectos da vida do país no início do Outono de 2017. Quem  pegasse no carro, com a gasolina a vinte euros , numa  segunda-feira de manhã, cuidaria de passear  num antigo  sábado modorrento. Estranharia, no entanto, o lixo amontoado em redor dos contentores sufocados e as novas viaturas da força anti-motim da DINATE. Este corpo policial foi constituído agrupando elementos ainda lúcidos das antigas polícias e forças armadas, combinando-os com elementos trazidos pela CADE. Circulavam em SUV’s pretos e detinham quaisquer arruaceiros ou manifestantes não autorizados. Aos  poucos, a calma regressou.
A viagem, suponhamos ,  de Marília a Setraga, onde eu vivia, far-se-ia em auto-estradas quase desertas. Ao contrário, se o viajante optasse pelas estradas secundárias, mergulharia em infindáveis comboios de carros, camionetas, motos e bicicletas, mas apenas em algumas alturas do dia. Não havia  muita vida, estava era concentrada em determinados períodos. Mantendo-se na autoestrada, saíria numa Luzia com metade das faculdades
 encerradas.  Muitos  dos estudantes conseguiram sair do país antes da CADE, outros regressaram às suas terras onde se amontoaram com desistentes de muitas das universidades de cidades mais pequenas. Nesse Outono, creio que na terceira semana de Setembro, encontrei um amigo   que ainda era professor na universidade em Luzia. Estava de passagem por Setraga. Não o via  há um ano, comunicávamos raramente  por email, fiquei espantado. Calmo por natureza, parecia nessa tarde um cão de combate.
     -  Já viste? Já viste  no que deu a vossa mania de paninhos quentes? De que te serve isso agora? Querias paz e essa merdas para quê?
Deixei-o falar,  os olhos  de canário, nervosos, a voz rosnada. Era um sentimento comum a uma elite  intelectual, angustiada e negada. Pior do que o empobrecimento e  a humilhação, esta elite lamentava a perda de influência. Os melhores alunos tinham partido, os media não queriam dar a palavra  a juristas, filósofos ou escritores. Não tinham nada para dizer, pouco para fazer e, agora, sítio nenhum para onde ir. As redes sociais, tão populares antes da Grande Crise, eram agora inutéis: já pouca gente tinha acesso aos dispositivos electrónicos, ou paciência para eles. Uma minoria ainda trocava textos furiosos em circuito fechado, cheguei a participar, meio distraído, nessas arenas, mas sem resultado  prático. Os media não os ampliavam, antes pelo contrário: ignoravam-nos. 
Os principais  jornais e canais televisivos continuavam , como antes da Grande Crise, centrados na pequena vida da capital,  Marília. Ainda existia um círculo de beau monde  provinciano, que incluia vedetas de TV, humoristas do regime e analistas políticos pagos para acalmar as massas. Estes eram muito importantes, porque,  ao lado da pobreza generalizada,  continuavam a existir salários principescos pagos a mordomos que administravam  um punhado de empresas públicas que a CADE deixou  ficar. Era necessário um trabalho de linguagem para que  a temperatura não aumentasse. A luta“contra a  anarquia”, contra a “inveja social”  e contra  a “dissolução da coumunidade” faziam parte desse léxico.



domingo, 20 de janeiro de 2013



                                                      II

Enquanto preparava o  discurso, o ministro tratava de ser admitido numa grande multinacional de consultadoria, arrumava os pertences ( a peluda, como dantes se dizia na tropa) e enviava a família, com antecedência, para um destino fresco. Muitas individualidades – para usar a classificação preferida dos media -  fizeram percursos semelhantes. A retórica  do estamos  todos no mesmo barco, repetida  todos os dias desde  o início da Grande Crise, escondeu sempre  a existência de um porto de abrigo a poucas  braçadas de distância. A esse refúgio aportaram muitos. Alguns aproveitando apenas a sorte e o talento que lhes fez acumular os recursos  necessários para escapar, mas também uma cáfila de aldrabões contumazes que trocaram as convicções por uma conta bancária. 
Recordo-me de um desses, espécie de rolha que  flutuava desde os tempos anteriores  ao descalabro, na televisão , a pedir paciência e confiança aos cidadãos. Rita, sentada no chão mas encostada onutra parte  do sofá, como se tivesse medo que eu lhe pegasse moléstia, resbunou a certa altura um "não vale  a pena". Disse-lhe que  não valeria  pela figura da televisão, mas talvez por nós.
    - Nós, queres dizer mesmo nós? Ainda menos.
Nesses tempos, que  parecem já tão distantes como a costa ao náufrago, não sabíamos o que estava para vir. Nem no país nem para o nós de que Rita  descria.
As outras forças policiais, exangues pelas greves sucessivas e por abandonos  constantes, já só garantiam a protecção de quem   ( ainda) lhes pagava. Alguns bancos, centros comerciais – agora reduzidos  a metade da oferta, edifícios e algumas  entidades públicas recebiam o serviço. 

A CADE desdobrou-se em gabinetes civis, equivalentes aos antigos ministérios e os tribunais  deixaram de ter trabalho: sem economia, com metade da população e poucos bens susceptíveis de disputa,  a lei adormeceu. Foram nomeados comissariados  - um Nacional e vários regionais com quadros  da antiga ordem administrativa , para trabalhar com os novos patrões, que se limitavam a executar.
Ao contrário do que muitos previam, o país não se dedicou  ao caos. As pessoas protestavam nas ruas, sim, mas sem  rasgo, quase como um dever. Nas cidades maiores,  os antigos inspiradores da violência constestatária de esquerda foram ultrapassados. Gangues de miúdos faziam as vezes dos outrora politizados e quando se envolviam com a pouca polícia, faziam-no de cara destapada.  A CADE assegurou  a todos os desempregados um rendimento mensal mínimo equivalente  a  metade do último salário ou da última prestação de solidariedade que receberam. Em troca, os desempregados obrigaram-se  a executar qualquer tarefa exigida pelo Gabinete de Salvação Solidária ( GASO) . A CADE assegurou também a permanência no país  de todo os cidadãos nacionais por  forma a evitar  a debandada geral. Foi validada uma lei que obrigava a emissão de vistos autorizados pelo Governo Central Europeu. Nessa altura, Maio  de 2017, dizia-se que o país já só contava com cinco milhões de habitantes ( menos de metade  da população que existia antes da Grande Crise de  2013).
Os políticos tradicionais  desapareceram. Deputados, homens de partido, autarcas.  As pessoas não os suportavam, culpavam-nos pela situação. De certa forma, não eram necessários. Sem eleições, parlamento ou governo, toda a antiga estrutura política ruiu naturalmente.  Um  céptico leitor de Schmitt diria que o país acolheu  a CADE como ditador suave e dispensou  o sistema partidário. Não foi bem assim.  Os partidos, ao contrário do que era legítimo supor,  mostraram-se cada vez mais ferozes com as personagens  independentes. As pessoas compreenderam
que os partidos  seriam incapazes de se regenerar, não porque fossem partidos, mas porque eram aqueles partidos. Demasiados compromissos, demasiadas mentiras. A emigração não ajudou nada e as novas gerações, despolitizadas, como disse um velho republicano, saíram sem olhar para trás. Alguém ainda mais céptico diria que os partidos acabaram porque não havia lugares para distribuir. Não foi bem assim,  veremos  isso depois, mas quase.






                                                    I


Não sei como os historiadores vão definir  este período. Esta é a minha contribuição, porque vivi e observei os acontecimentos. Não vi tudo, não observei tudo, mas estive perto do centro da acção durante uma semana. Estou de saída e quis obrigar-me a um exercício de recordação, para não ser como o  filósofo de Gasset, aquele que vive entre as coisas  que se diz terem morrido.
 Um ponto de ordem para que os mais novos, quando lerem estas páginas, compreendam o desenho global. Em meados de 2017, o que restava da antiga ordem esfumou-se de vez. O país ficou sem governo, sem parlamento, sem presidente. Não por causa de um golpe militar ou de uma  revolução, como é regra na História, mas porque ninguém quis governar. Antes que começasse o saque de bancos, lojas e escolas, e  a paralisia total ( porque a quase total já existia) engolisse a nação ( soa-me estranho escrever esta palavra), o Governo Central Europeu  nomeou uma Comissão  Administrativa Especial ( a CADE). Esta estrutura chegou acompanhada de uma força anti-motim ( a Direcção de Normalização Territorial, DINATE) que dissolveu todos os corpos policiais e militares existentes. Isto  só foi possível porque  as polícias e as Forças Armadas estavam sem dinheiro. Visto agora, à distância, parece bizarro que tantos militares tenham tolerado serem desapossados da sua autoridade e prestígio. Na altura, quem viveu esses  tempos, não estranhou. Os serviços já eram mínimos, os indivíduos, sob as fardas, guardavam dívidas e desespero.
O último ministro  da Defesa de um governo irreal, nomeado na prática já pelo Governo Central Europeu,  antes de se demitir, em Março,  disse esperar que as Forças armadas soubessem manter a compostura e o sentido patriótico. É quase onírica  a forma como nos comportamos  em períodos de urgência.