domingo, 24 de fevereiro de 2013


                                                      XI

Levaram-me à estação, os três,   sem mais discursos, e avisaram que me contactariam em breve. 
Cheguei a Marília no comboio do final da tarde. Não tinha a carta TPM ( transportes públicos modulares) , por isso fui a pé até à praça que sabia ter pensões baratas. Alojei-me no Hostel Vitória , estendi-me na cama e adormeci. Já passava das nove quando fui comer  uma bifana engolida com uma cerveja pelo  preço de um jantar nos velhos tempos. Não me apeteceu  telefonar aos meus contactos  da rede, estava enfartado de discussões, política e estética conspirativa.
Nessa noite, enquanto  jantava sem fome, estava a ser preparado – do outro lado da cidade-   o que ficou conhecido como  a Castanhada. Numa  área residencial de qualidade ( ARQA), onde residiam muitos funcionários superiores da CADE, e alguns mordomos,  instalou-se  um obscuro  departamento -   a Comissão de Normalização Identitária. Esta catacumba burocrática,  que dependia do mais mediático Gabinete de Relações Exteriores, responsável pelas autorizações de saída do país, ocupava uma moradia luxuosa e tinha sempre dois homens da DINATE ao portão.
Tanto quanto se soube depois, um velho vendedor de castanhas , outra vez as castanhas, extraviou-se e foi para a zona com o museu ambulante  -  o fogareiro instalado num carrinho de  mão. Talvez o homem tenha pensado que ao final da tarde, alguns dos abastados habitantes do bairro, ao chegarem  a casa, quisessem comprar um  cartucho de castanhas para aperitivo ou sobremesa. Tanto quanto se soube depois, o homem terá  sido espancado, ou talvez só empurrado, ou apenas insultado, pelos dois seguranças  do edifício da CADE. 
Por coincidência, um activista da RENA tinha sido convocado ao edifício para  regularizar  um assunto  e assistiu a tudo. Num ápice, estavam à porta da bisonha Comissão dezenas de  membros da RENA. Espancaram os seguranças, forçaram  a entrada  na casa, destruiram o que puderam e desfraldaram uma bandeira da resistência na varanda do gabinete  principal. Os homens da DINATE , quando chegaram, ficaram surpreendidos porque  um extraordinário ajuntamento  - a zona ficava  fora de mão e era  residencial -  organizara-se  na rua defronte da moradia ocupada. O que  era para ser  uma simples operação de limpeza  e detenção de um punhado de activistas transformou-se numa enorme confusão. Disse-se mais tarde que o velho vendedor de castanhs era muito querido num bairro popular contíguo à zona residencial, o que explica a aliança entre gente comum e os activistas da RENA. A batalha campal prosseguiu, com cada vez mais reforços da DINATE e cada vez mais manifestantes lutadores  Nunca se chegou a saber ao certo  o que manifestavam e isso permitiu o crescimento da lenda ( ou da narrativa, como dizem os  escreventes de hoje).







O que distinguiu a Castanhada de outras desordens não foi de certeza o resultado: alguns feridos , dois ou três  severos, várias detenções e um gabinete  arrasado. Nos dias seguintes, o incidente, ou os incidentes, para ser mais exacto, começaram a ser discutidos .  Os sítios  do congressos,  das univesidades e as tertúlia electrónicas   foram albergando uma teoria.  O que se passara  deu  corpo, e finalmente nome, à situação do país. Já não se tratava da guetização, mas de  algo mais profundo: o país  estava colonizado.  Os radicais do NOSSO e da RENA pegaram   na ideia e desenvolveram-na, indo  desenterrar os textos dos teóricos pós-colnialistas do século passado,  como Said e Fanon. Não se sabe  ao certo quem deu o mote, mas a ideia infectou rapidamente. 
Tudo isto foi-me contado uns dias depois. Fiquei na pensão,  adoentado. Uma gripe ou um distúrbio psicossomático, como dizem os psiquiatras,  causado pela saída de casa, de Setraga e do GASO, pela reunião em Kara, pela angústia morna que me assolava. Bebi chá e torradas nos cafés da praça Alegro e passei  as tardes a dormitar. Na manhã de 27 acordei com o telemóvel. Era Laura e estava à minha espera para almoçar no Zazou. Sim, já tinha ouvido falar, um dos poucos restaurantes charmosos  e informais  que sobreviveram, frequentado pelos chefes das redacções, filhos de mordomos, turistas  e beau monde em geral.
Deixei passar o resto da manhã, tomei um duche e um café que o estômago suportou e lá me arrastei até ao restaurante. Encontrei-a numa mesa no meio da sala principal, o que me deixou desconfortável e exposto. Perguntou-me o  que andara  a fazer e expliquei-lhe a moléstia. Directa ao assunto, quis saber o que eu pensava da tese da colonização. Não podia dizer muito. Não tinha visto televisão e os jornais que  espreitara  só referiram os acontecimentos sem segundas leituras.
Os media  funcionavam assim  desde a chegada da CADE. Salvo excepções individuais, ou seja, de  alguns jornalistas dentro do sistema mediático , e colectivas – pequenas publicações em papel e sítios da net alimentados por jornalistas independentes -,  os media espelhavam a voz dos donos do país. Não era novidade nenhuma. Num passado já distante, quando o país  se submeteu  a outros regimes de força, os jornalistas ( e os juízes) também obedeceram. Se houvesse uma mudança brusca, o que era  improvável, os media adaptar-se-iam rapidamente, saltando e pulando às ordens  dos novos comandos.
Ouvi a sua opinião e não fiquei impressionado. A CADE, como braço armado, no sentido poético, do Governo Central Europeu, ocupou o país e as suas elites dirigiam os assuntos locais. Estávamos, portanto, colonizados. Tive dúvidas sobre  a base da coisa, repeti a minha cassete.
-       É verdade que o governo europeu dirige os nossos assuntos, porque nos sustenta, mas não retira nenhum proveito, pelo menos directo. Sim , a teoria do cordão sanitário, de zonas tampão que não afectem o equliíbrio dos países estabilizados. Isso não é colonização. Tem de se apurar afórmula e, sobretudo, temos de perceber  para  que é que ela  serve.
Pegou no copo de um alvarinho  galego, muito bom, por sinal, mas não bebeu.
-       É para coisas dessas que contamos consigo. Para aprofundar.
O elogio implícito deixou-me indiferente. Noutros tempos teria funcionado, mas agora não produzia efeito nenhum. Quis saber  do grupo de Kara. Enquanto esperavámos pela sobremesa, uma simples banana para o meu estômago em convalescença ( lembro-me, porque ainda estava fraco,) ela decidiu falar. Recordo o relato, já que o afixei na memória com pregos rijos. Fingi que não me interessava, mas interessei-me.
Laura foi anestesista  num hospital em Dúrio nos anos da Grande Crise.  Começou a fazer cada vez menos  horas e a ganhava  cada vez menos. Em 2016, concorreu para vagas em Inglaterra e na Alemanha, mas não conseguiu  os lugares. Vivia com um irmão, desempregado e metido em sarilhos com a polícia por causa de protestos e arruaças. Nesse ano envolveu-se com um advogado, rebelde  e romântico,  que conheceu  durante um dos processos do irmão. Engravidou. O tipo , de início, disse-lhe que uma criança  era um raio de sol num futuro escuro, mas passadas umas semanas, desapareceu . Laura soube depois que o homem fora  para Marília  traabalhar  com as equipas de vanguarda  da CADE. Hoje é um mordomo  que colabora  com  a DINATE , na área de apoio jurídico. 
Laura deprimiu com tudo isto: sem dinheiro, sem o namorado e pai da criança, com um irmão imprestável. Abortou espontaeamente. Sem nada para fazer, e zangada com tudo, resolveu atirar-se às tertúlias electrónicas. Numa dessas cruzou-se  com Piter. Ao fim de algum tempo já não   falavam sobre  a ruína do regime, a confusão, as alternativa.  Falavam sobre cinema e poesia pré-rafaelita.







A seguir a esta oleosa anamnese íntima, a mulher  abriu  um bocadinho a janela sobre o grupo de Kara. Piter tinha sido jornalista num diário muito popular até ao início da Grande  Crise. Nunca ouvi falar dele. Estava sem emprego há quase dois  anos, fazia biscates intelectuais, como lhes chamava: trabalhos para colegas ainda empregados, uma ou outra coisa para as televisões, pequenas traduções.  Tinha dinheiro porque o pai era um conhecido industrial de hotelaria muito conhecido mesmo. Agora, depois da histórica clínica dela, a do amigo. Eu não era psiquiatra.
-       Laura, a sua história não me interessa.
A reacção dela foi de fibra. Exibiu o poder de encaixe de um  Joe Frasier . Tocou-me com pé ao longo da perna. Bebeu o vinho que tinha no copo e olhou-me com sal.
-    Fomo-nos juntado. Uns e outros. O Piter apresentou-me  a amigos Temos mais miolos do que os congressos e a resistências todas  multiplicadas por mil.  Queremos  fazer tudo de novo, queremos  inventar  um país.
Enfadado com o regresso do sintoma Professor Pardal,  lembrei-lhe que isso  que isso era conversa velha, parecia saída das  campanhas eleitorais do antigamente. Só faltava  as  saudades do futuro.
-       Não está a compreender, Gil. Você ainda não entendeu, pois não?
Tinha  a carteira pendurada nas costas da cadeira. Tirou-a, abriu-a e entregou-me uma folha de papel. Estava numerada, não recordo o número, mas parecia  ser uma conclusão. Ofereceu-ma. Li e guardei-a:


Inventar o país, só por acaso  corresponde aos limites do nosso território  actual. Partiremos deles.
Inventar um país significará redesenhar toda a estrutura social. Não queremos democracia nem igreja única. Não queremos a velha estrutura judiciária, financeira e administrativa. Não queremos sequer um país como vocês estão habituados a imaginar.
Pretendemos, dentro dos limites físicos actuais do nosso território, uma comunidade de comunidades. Cada cidade, cada vila, cada aldeia, será um orgão. Cada orgão decidirá como viver e não aceitará ordens de terceiros. Se vier a haver mil línguas diferentes, paciência. Se vier a haver mil orientações legais diferentes, paciência Se vier a haver mil concepções diferentes de educação, paciência.
Será um páis de países , se quiserem utilizar a antiga linguagem. Será a única forma de sobrevivência par aum território exposto a mil feridas. O que reunirá este espaço? A língua e a História. São almas  suficientes e nenhum burocrata  europeu as poderá  apagar.

Olhei por cima das mesas, para  a rua. Era fantástica a imaginação das pessoas. Utilizavam elementos patrióticos para justificar o desmembramento do país. 
Não me deixou pagar o almoço. Agradeci-lhe e disse que precisava de descansar  um bocado. Ela compreendeu e prometeu  contactar-me  mais tarde.








domingo, 17 de fevereiro de 2013



                                                        X



Nessa altura tive a certeza  de estar numa  casa de malucos. Arrependi-me de ter vindo e concentrei a minha atenção em sair dali o mais depressa possível. O problema é que estava sem carro algures  nos arredores dos arredores. 
Enquanto o porta-voz e o louro se levantaram para buscar um documento que eu devia ver,  fiz-me de ocupado  a aparar a cinza do cigarro para o cinzeiro. Quando levantei os olhos, o louro estava à minha frente e entregou-me o papel. Começava com a mesma arenga que Piter tinha feito, mas depois arregalei os olhos. Ainda o  tenho na memória, mais letra, menos  expressão:

“ Fazer um país  é, portanto, uma obrigação. Vivemos  isolados do resto da Europa e, por infecção , do resto  do mundo. Este isolamento não é físico nem comunicacional: os estrangeiros podem chegar, ninguém nos impede de interagir electronicamente com quem quisermos.  Acontece que não é necessário:  não contamos  para nada, nada temos para oferecer, nada podemos comprar.”

Fiz uma pausa e reparei que me tinham deixado sozinho Os três  despareceram para outra parte daquela gaiola de doidos.. Continuei a ler.

“  Os antigos modelos  estão esgotados. Não vivemos sob o capitalismo porque não produzimos riqueza, não podemos  ser socialistas porque nada existe para distribuir com justiça. A pequena  oligarquia é administrativa e vive do dinheiro da CADE”.

O resto do documento era no mesmo tom e acabava prometendo uma solução. Deixara-me levar. A  solução, afinal, era uma promessa. Iguais a muitos lunáticos. Laura, outra vez na sala, como uma pantera cuidadosa, sussurrou nas minhas costas, adivinhando-me  sem dificuldade os pensamentos.
     -  Roma e Pavia não se fizeram num dia.





Apesar da humidade, fomos os quatro para um pequeno terraço nas traseiras da casa. O louro  trouxe cafés, autênticos,  e umas bolachas de importação. Uma reunião magna estava a ser preparada em Marília. Nessa altura seria revelada  a solução.Lérias.
Enquanto parlapatavam, analisei o grupo. Havia qualquer coisa que não batia certa. Nunca tinha ouvido falar deles. Podiam ser, de facto, uns fantasistas bem intencionados, mas, os  métodos, e  a forma como me encontraram revelava isso, eram eficazes. Explicaram o que queriam de mim. O louro falou, sem convicção, como se passasse uma informação trivial.  Precisavam de pessoas que não estivessem comprometidas com o regime  que ruiu nem com a CADE. Precisavam de pessoas alheadas e sem nada  a perder:  se as conseguissem convencer,  convenceriam também os abonados enterrados em dívidas e compromissos. Eu não tinha ninguém  a cargo, sabia pensar  e escrever, e vinha  a caminho de Marília. Perguntei  como sabiam tanto. Responderam-me que  não se pode mudar o que não se conhece. Virei-me para Piter, que subentendi ser o líder ( explicou-me que não tinham líderes, eram transversais ou outra osgada do género) e perguntei-lhe como se faz um país.
-       Não faz.  Ninguém faz um país sentado  a uma secretária. Mesmo os que o tentaram, recorde o Congresso de Viena, sob a direcção do grande Metternich, acabaram por ver os seus esforços desperdiçados pouco tempo depois.
Não me apetecia jogar.Insistiu.
-       Compreenda. Não se trata de inventar  um país. Queremos dar uma forma diferente ao conceito.



Continuei  a leste. Quis manter-me impávido, mas franzi os olhos num sinal infantil de socorro por mais detalhes. Piter declarou que teríamos ocasião para desenvolver o assunto na tal reunião que haveria de ter lugar em breve.
Nunca cheguei a participar na tal reunião e ainda hoje a imagino. O que fiquei a saber posteriormente  não me deu uma perspectiva ampla, mas, como contarei mais tarde, deu-me o suficiente. Em todas as alturas de definição da vida das gentes existe a tentação voltar para trás. Este retorno só na aparência é benigno na sua ilusão de querer recomeçar. Não é um começo, é uma destruição.








































O início do fim do começo






















Levaram-me à estação, os três,   sem mais discursos, e avisaram que me contactariam em breve. Cheguei a Marília no comboio do final da tarde. Não tinha a carta TPM ( transportes públicos modulares) , por isso fui a pé até à parça que sabia ter pensões baratas. Alojei-me no Hostel Vitória , estendi-me na cama e adormeci. Já passava das nove quando fui comer  uma bifana engolida com uma cerveja pelo  preço de um jantar nos velhos tempos. Não me apeteceu  telefonar aos meus contactos  da rede, estava enfartado de discussões, política e estética conspirativa.
Nessa noite, enquanto  jantava, angustiado, estava a ser preparado – do outro lado da cidade-   o que ficou conhecido como  a Castanhada. Numa  área residencial de qualidade ( ARQA), onde residiam muitos funcionários superiores da CADE e alguns mordomos,  instalou-se  um obscuro  departamento,   a Comissão de Normalização Identitária. Esta catacumba burocrática,  que dependia do mais mediático Gabinete de Relações Exteriores, responsável pelas autorizações de saída do país, ocupava uma moradia luxuosa e tinha sempre dois homens da DINATE ao portão.







Tanto quanto se soube depois, um velho vendedor de castanhas extraviou-se e foi para a zona com o museu ambulante  -  o fogareiro instalado num carrinho de  mão. Talvez o homem tenha pensado que ao final da tarde, alguns dos abastados habitantes do bairro, ao chegarem  a casa, quisessem comprar um  cartucho de castanhas para aperitivo ou sobremesa. Tanto quanto se soube depois, o homem tear  sido espancado, ou



talvez só empurrado, ou apenas insultado, pelso dois seguranças  do edifício da CADE. Por coincidência, um activista da RENA tinha sido convocado ao edifício para  regularizar  um assunto q e assistiu a tudo. Num ápice, estvavam à porta da bisonha Comissão dezenas de  membros da RENA. Espancaram os seguranças, forçaram  aentrada  na casa, destruiram o qu e puderam a desfraldaram uma bandeira da resistência na varanda do gabinte  principal. Os homens da DINATE , quando chegaram, ficaram surpreendidos porque  um extraordinário ajuntamento  , a zona ficava  fora de mão e era  residencial, como  já disse, organizara-se  na rua defronte da moradia ocupada. O que  era para ser  uma simples operação de limpeza  e detenção deum punhado de activistas transformou-se numa enorme confusão. Disse-se mais tarde que o velho vendedor de castanhs era muito querido num bairro popular contíguo à zona residencial, o que explica a aliança entre gente comum e os activistas da RENA. A batalha campal prosseguiu, com cada vez
mais reforços da DINATE e cada vez mais manifestantes.  Nunca se chegou a saber ao certo  o que manifestavam e isso permitiu o crescimento da lenda ( ou da narrativa, como dizem os  escreventes de hoje)







O que distinguiu a Castanhada de outras desordens não foi de certeza o resultado: alguns feridos , dois ou três  severos, várias detenções e um gabinete  arrasado. Nos dias seguintes, o incidente, ou os incidentes, para ser mais excato, começaram a ser discutidos .  Os sítios  do congressos e das univesidades e a tertúlia electrónicas   foram albergando uam teoria.  O que se



passara  deu  corpo, e finalmente nome, à situação do país. Já não se tratava da guetização, mas de  algo mais profundo: o país  estva colonizado. Os radicais do NOSSO e da RENA pegaram  logo na ideia e desenvolveram-na, indo  desenterrar os textos dos teórico spós-colnialistas do século passado,  como Said e Fanon. Não se sabe  ao certo quem deu o mote, mas a ideia infectou rapidamente.
Tudo isto foi-me contado uns dias depois. Fiquei na pensão,  adoentado. Uma gripe ou um distúrbio psicossomático, como dizem os psiquiatras,  causado pela saída de casa, de Setraga e do GASO, pela reunião em Kara, pela angústia geral que me assolava. Bebi chá e torradas nos cafés da praça Alegro e passei  as tardes a dormitar. Na manhã de 27 acordei com o telemóvel. Era Laura e estava à minha espera para almoçar no Zazou. Sim, já tinha ouvido falar, um dos poucos restaurantes charmosos  e informais  que sobreviveram, frequentado pelos chefes das redacções, filhos de mordomos, turistas  e beau monde em geral.





terça-feira, 12 de fevereiro de 2013


                                                    IX


Pegou-me pelo braço e pediu-me que a  acompanhasse. Chamava-se  Laura  e queria falar comigo, coisa que eu já tinha percebido. A ideia era andarmos  até ao carro  que estava estacionado no lado oposto ao da estação.  Achei melhor ficar calado, porque nada tinha para dizer. Os anos  de inacção e  rotina depressiva tiraram-me  a capacidade de reagir. Não sabia  a  língua, não sabia a inflexão certa da voz. Chegámos ao carro, afinal já fora  do parque de estacionamento da estação. Entrámos para  o  japonês, ou coreano, não me recordo,  preto e  bem usado, e as explicações começaram:
     -  Saber o seu número  foi simples. Temos um amigo no GASO de   Setraga. Agora vamos conhecer uma  pessoas, ‘tá bem?

Arrancou suavemente como uma amiga que vem buscar um amigo.  Resumindo, Laura e uns amigos tinham organizado uma base de dados  sobre pessoas que pudessem fazer qualquer coisa  de diferente. Tudo muito simples, muito natural. Excepto saberem que  eu estava num comboio em direcção a Marília:
        -Falámos  hoje de manhã com a sua mulher.
Também sabiam o número dela através  dos registos do GASO. Muita coisa sabiam estes amigos.  Ela guiava concentrada mas não na condução. Dir-se-ia que me observava através da orelha direita, pequenina  e bem desenhada, deixada livre pelo cabelo apanhado. Um cabelo preto mortal, a pele bem tratada, lábios  grossos, dedos  finos   e longos. Não sei por que bufido do meu cérebro, lembrei-me que fosse médica.
- Fui anestesista. Há muito tempo.





A viagem continuou. Passámos  Kara,  com os seus prédios miseráveis de janelas e varandas pequeninas,  ruas largas, e agora inúteis,  e passeios esburacados. Reparei nas pessoas que se equilibravam nas bermas e lembro-me de ter pensado  como talvez  pouco tivessse mudado. Antes da Grande Crise  conhecera terras assim,  baldeadas à ilharga das grande cidades, onde não parecia haver tempo para mais nada a não ser trabalhar comer e dormir. Era como se agora fosse o mesmo mas em versão emagrecida.
A estrada  ficou rural de repente e o trânsito era  insignificante. Resolvi que era tempo.
       -   Vamos lá ver. O que é que querem de mim?
Explicou-me que não explicava. O grupo  debatia em conjunto. Não tinham a certeza se eu aceitava o convite. Ainda faltava um bocado, por isso tentei recuperar informação que me tivesse escapado.  Debate? A política estava reduzida às reuniões pomposas  dos congressos e às ameaças da RENA e do NOSSO.  O país estava estrangulado, semi-deserto e as pessoas queriam apenas sobreviver. Talvez fosse mais um grupo de lunáticos enrodilhados em discussões geopolíticas e doutrinárias. O que eu não percebia era o que raio poderiam querer de mim.  Sim, já tinha sido um bocadinho de tudo – escritor (de artigos), jornalista, blogger – mas agora era um técnico  de educação a meio tempo, desatento profissional,  sem porto de abrigo e sem norte. E velho.
      -    Cinquenta anos não é velho.
Ela disse isto com o entusiasmo do  homem da bilheteira do estádio a vender um jogo das reservas. Abrandou junto do portão de uma quinta, seguiu por uma vereda e estacionou no pátio de uma casa de campo com muito bom ar. Branca, com heras verdes e umas escadinhas que davam acesso à porta , garned e castanha,  onde estavam à minha espera dois homens. Também bem vestidos como mordomos, cabelo curto, um já calvo e entroncado, o outro loirito e magro, ou talvez só alto. Agradeceram a minha vinda, cumprimentaram-me com um aperto de mão amigável e entrámos para um pequeno corredor. Daí fomos para uma grande sala cheia de livros, com uma lareira e sofás  luxuosos. O calvo entroncado chamava-se Piter, o louro respondia  pelo  nome de António. Sentámo-nos todos, eu num individual, os dois  homens num maior.    Laura ficou de pé, atrás de mim,  e passou-me um cinzeiro, o que lhe ficou muito bem. O  entroncado começou:
-       Comos sabe, estamos num impasse.
Respondi que talvez. Não ligou.
-       O país já não existe. Morreu. Isto tem de ser percebido não importa a propaganda da CADE, do Governo Europeu e de todas as nossas  excrescências políticas, sejam elas os congressos, os radicais ou outros.
Acendi um cigarro sob o olhar aprovador de Laura e um leve arquear de sobrancelhas do louro. Piter continuou o discurso com os olhos pequeninos cravados no tecto, num gesto teatral. Percebia-se  que ensaiado mil vezes.
-       Já não se trata de recuperar a nação, a alma, a dignidade. Trata-se de  fazer outro país.



sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

                                                                          VIII





Kara, a última estação decente antes de Marília, era uma  zona suburbana, ainda ruralizada. A bem dizer, de novo ruralizada. Nos anos da Grande Crise ( agora já nem se podia falar de crise, porque  não havia horizonte de mudança), alguns especialistas falaram do regresso à terra.  Lembro-me de sorrir, como é de bom tom diante da falsa  ingenuidade.  A terra  de que falavam seria a da produção agrícola, uma terra desconhecida no país, onde  a agricultura foi  quase sempre de subsistência. ou de negócios com subsídios europeus). A pouca que não o era apenas suportou a concorrência dos grandes espaços deste mundo graças a subsídios, vonatde metálica  e ajudas. O regresso à terra era, no fundo, o regresso à pobreza.




Parecia um enredo de um fime simplório de espionagem .  Usei o pouco saldo que tinha no aparelho para  enviar um  email para os meus dois contactos. Combinei com ambos às seis  da tarde, num café que conhecia bem, perto de uma praça enxameada de pensões  baratas mesmo no centro de Marília. Teria tempo para me instalar e pensar. Depois decidi enviar outra mensagem a anular a primeira. Queria  ficar livre para decidir  sobre o telefonema e o provável encontro.
O resto da viagem , com paragens intermináveis, passei-o ansioso e aparvalhado com chamada do homem desconhecido. Não com  a chamada em si , mas com o facto de o desconhecido  saber o meu número e o meu  nome.  Para resolver o assunto  talvez valesse a pena   encontrar-me com um tipo que nem sabia se era gordo ou magro, baixo ou alto, mas  se saísse em Kara teria depois de comprar novo bilhete para o centro de Marília. A curiosidade era  um mau negócio.




Nem dei pela paisagem verde-encardida, os montes semeados de pequenas casas, os apeadeiros  baços e descuidados. Num deles, acordei da inquietação porque senti o cheiro de castanhas assadas quando estiquei as pernas à porta da carruagem.  O homem estava na outra ponta da plataforma e só tinha um cliente, uma mulher bem arranjada com duas crianças . Soube-me bem aquele pedaço de familiariedade, ou de memória desarranjada. Depois  da mulher e das crianças  se terem afastado, vi o homem sozinho durante  o resto do tempo em que o comboio esteve parado.  Mais ninguém  lhe comprou castanhas e o vendedor devia ser estúpido ou desconhecia o cálculo de probabilidades. Quando penso estes pensamentos de plástico sinto-me idiota, claro. Esta raiva contra o homem das castanhas, caríssimas e um luxo dispensável, era  uma raiva importada de um país  que já não existia. Poucos podiam dar-se ao luxo de ter luxos.







A última estação antes de Kara era um apeadeiro em  Rio Seco, uma terriola  agrícola e um antigo  dormitório.do tempo em que havia trabalho em Marília. Tinha de decidir. Agora sei-o, na altura  enganei-me com dúvidas. Se tinha largado tudo era porque não estava disposto a ter uma vida, ou o que restava dela, normal. Nenhum sentimento romântico  ou de  entrega a uma causa  ( até porque a desconhecia),  como já expliquei e é justo que saibam. Também não se tratava, preciso de justificar, do cultuar da posição do anti-herói  desprendido. Como muita gente, apenas pretendia desistir de três anos de prisão moral.
 Ainda guardo um pedaço de um texto que escrevi, no Natal de 2016, para um pequeno jornal irregular  de Setraga:


“ (…)  Viver com que se tem, se se tiver pouco, é viver pouco.  Viver com o que se  se tem, se não se tiver nada, não é viver. A propaganda diz que pouco é melhor do que nada, mas não é esse o problema.
Saber que nunca teremos mais do que pouco, ou nada, obriga-nos a demitir o tempo. E o tempo, já nem digo o futuro, é o que nos devia salvar do pouco, ou do nada, que temos. Esse tempo não existe”.

 Como o meu amigo professor  me avisara, este género de lamentação era falinha mansa. O problema é que os radicais, da RENA ( Resistência Nacional) ou do NOSSO ( Novo Socialismo), ofereciam apenas caos. Agarrados aos velhos sonhos, marxistas e leninistas,  reciclados nos Zizeks e Badious, diziam às pessoas para  erguer barricadas. Ninguém lhes ligava, o que quase me fazia  ficar do lado deles.  Depressa me  passava  a empatia, porque  os radicais persistiam em desprezar as dificuldades das pessoas. Os abonados não ardiam no fogo revolucionário: tinham filhos, dívidas e alguns  bens salvos da ressaca da Grande Crise. Na  mistificação comunista, as pessoas, os explorados, são meios e não fins. A verdade é que numa coisa os radicais estavam certos: o tempo, o tal tempo,  esgotava-se.





Sentia-se, em pequenos detalhes, uma espécie  de desespero diferente. No jornal que  li na estação, bem como no que fui vendo nos minutos esquecidos dos telejornais, apareciam  gotas de  protesto. Em Vora, a apenas cinquenta  quilómetros de Marília,  um grupo de pessoas , cerca de quarenta,  sem organização política conhecida ,  destruiu um gabinete do GASO. O que  me chamou  a atenção , como a muita gente, suponho, foi o facto de a destruição ter sido metódica e ordenada. Não houve gritos, palavras de ordem ou balbúrdia. As pessoas  entraram no edifício, onde também funcionava uma pequena antena de saúde, em silêncio. Manietaram os dois seguranças regaram as salas com um qualquer liquído inflamável e pegaram fogo ao circo. Depois abandonaram o local como se tivessem ido tratar de assuntos administrativos, em boa ordem e calma. Se tivessem ficado tinham sido presos. Não houve  nenhuma mensagem encaixilhada num manifesto de protesto nem se podia tirar grandes conclusões do alvo: quatro ou cinco gabinetes médicos, a farmácia  necessária, uns tantos computadores e algum material médico.
 Durante os anos que antederam a vinda da CADE,  o estupor vingou e a raiva era  mecânica e com hora marcada, mas nos últimos meses alguma coisa estava a mudar. Talvez a chegada da CADE e a aniquilação das instituições tivesse despertado um reflexo, como o esticar das patas dos elefante de morrer. Coisa, coisas, as minhas palavras  eram tão vagas e coisificadas  como o meu pensamento.  O comboio parou em Kara às 11.31h. É difícil esquecer, porque fui verificando  a hora no telemovel.  Umas dez vezes.
Era ridículo. Não vivíamos  sob o terror, mas sentia-me conspirativo. Suponho que é da natureza humana. Até o mais flácido dos porteiros se imagina conspirativo quando  divulga um pequeno segredo dos poderosos. Decidi  sair do comboio e esperar pelo  meu interlocutor misterioso.  A estação tinha o movimento normal, nestes dias sombrios e  excepcionais, de um apeadeiro suburbano àquela hora.  Alguns trabalhadores que interromperam, não se sabe porquê,  o pouco trabalho que faziam  em Marília,  um ou outro casal  de velhotes. em marcha fúnebre. Ninguém parecia esperar-me e, claro, quem esperava era eu.




Andei uns metros, fingi consultar  os horários no écran sujo  do monitor  interactivo, pousei  a mochila e acendi  um cigarro. Nada. Fumei o cigarro já num estado  de descontracção. O ar estava molhado e o comboio partiu.  A ligação para Marília era só às duas da tarde, tinha muito tempo para pensar. Como dizia o  meu filho, era de borla. Pus-me a andar pela plataforma, contornei o edifício principal da estação e vi-me num terreiro cheio de lixo. Ao fundo, uma casinhota , um cão preso a um abrigo e um carro velho e desconjuntado.  O terreiro abria para uma ravina ampla, talvez de uns cem metros de profundidade e podia ver  a planície a seguir. Casas, hortas e oliveiras esparsas do meu lado esquerdo, malha urbana e mal amanhada do meu lado direito, atravessada por uma estrada desabitada. 




Quem escolheria um ermo destes  para conspirar? É certo que também podia ver restos de pequenas indústrias – barracões, edifícios que pareciam antigas oficinas, armazéns fechados, o que era irrelevante . Fosse como fosse,  a acção estava nas cidades e eu não era um oposicionista na clandestinidade   do antigamente. Não tinha a coragem nem o motivo.
 Voltei para trás , na direcção da estação, à procura do bar para um café, caro e  essencial, quando me cruzei com uma mulher bem vestida, alta e com o cabelo apanhado que lhe dava um ar ainda mais altivo. Nem dois  metros depois ouvi chamar:
-       Gil? Gil Gose?
Virei-me e a minha expressão deve ter acelerado as explicações:
-       Fomos nós que o contactámos.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

                                                                 VII




E era tudo o que me sobrava depois de 50 anos de vida. Bem, isso  e algumas rugas, um langor infeccioso e um desinteresse galopante.  Se me tivessem dito, há dez anos, que ia fazer isto, acreditava. Toda a gente  leva à pendura esta fantasia. O que me teria feito rir era a causa.
Tinha um destino:  Marília, ainda a capital do país.  Ao longo dos últimos meses também fui participando em algumas discussões em rede, evitando os alucinados que queriam fazer revoluções e reunir falanges, serpenteando  pelas alternativas de exércitos de um homem só. Esta gente, que  funcionava, como disse, em circuito fechado, aborrecia-me.  Os mordomos e a CADE ignoravam os rumores  e deixavam a pressão aliviar na rede. Levava  contactos de duas pessoas, nem sabia se homens ou mulheres ou mulheres,  que pareceram menos fantasiosas.
 Não era estranho, numa altura daquela, não ter amigos reais com quem pudesse ir ter.  Os laços foram-se perdendo e não era  situação a única responsável.  Nos últimos  anos, deixei de aparecer - não tinha paciência para suportar lamentos  nem alegria para conversar. Bem, talvez  a situação tivesse acelerado o meu isolamento, mas não o causou. Muitas pessoas ganharam  força com as dificuldades, mas a minha formação estóica derrotava-me. Não esperar nada do dia de amanhã era fácil, mas apreciar e despedir-me  do dia que passou, era impossível. A ditadura do presente, o motor estóico, parecia-me insuportável. Quando mais precisava do estoicismo, não fui capaz.



 Fechei  a porta do apartamento e fui a pé até à estação. Havia um primeiro  comboio da manhã  para Marília e   tinha  tempo. Desci as ruas vendo com olhos diferentes as mesmas casas. Restaurantes e cafés entaipados, várias lojas Delícia: todas iguais, onde se vendia desde  roupa usada a pacotes de leite. De vez em quando passavam bons carros, daqueles que se sabia levar mordomos ou gente a eles  associada. Os mendigos , fossem cegos, paralíticos ou simplesmente esfomeados, não podiam pedir na rua. A CADE organizou  as ZOSRA:  zonas de solidariedade recomendada. Eram geralmente recantos de jardins públicos, becos ou estaleiros abandonados . Os mendigos eram etiquetados e recebiam um cartão de beneficiário de uma determinada ZOSRA.  Se saíssem da circunscrição para ir pedir  nas zonas livres, eram levados para os centros de readaptação funcional ( CEREAL) do GASO local. Passavam a ter de trabalhar  sem salário em troca de duas refeições diárias e um telhado. Os mendigos  não gostavam  dos CEREAL por vários motivos, sendo o principal o tipo de trabalho: em regra, carregar e descarregar camiões  de mercadorias que o GASO  alugava para as tarefas necessárias ( abastecimentos de escolas, hospitais etc)




Setraga era agora uma cidade quieta. Fazia-me  lembrar a que só conhecera  dos livros, das descrições e das fotografias  de meados  do século passado. Antes da Grande Crise,  há apenas  meia dúzia de anos, estas mesmas ruas, estas mesmíssimas ruas, passeios e praças, barulhentas e opressivas, faziam-me  suspirar pelo sonho de uma casa na serra. Não só sonhos desses pareciam agora  delírios acrisolados , como dava um polegar, ou ambos, para voltar a ouvir e ver o clangor opressivo.
Cheguei à estação como um soldado desmobilizado, com a mochila às costas e a cabeça pesada. Comprei o bilhete e um jornal. Escolhi o Esperança, um diário do lóbi da CADE.  Sentei-me num banco e folhei-o. Gostava  de ver os nomes dos colunistas. Apreciar as letras e o asterisco que, repetido  em baixo, indicava a profissão do autor. Aprende-se bastante com a memória dos asteriscos. Muitos eram antigos patriotas que afinal nos convenciam, com números e fontes seguras, de que não havia outro caminho senão prosperar a longo prazo sob a CADE.
Um artigo de um emigrado, agora director numa grande empresa chinesa, explicava que o país tinha de ser paciente. Achei  infantil  o cliché China-paciência, mas a invectiva  fez-me pensar. Era aceitável  ser paciente com um ordenado de milhares de dólares e motorista. Por cá,  a  diferença entre a paciência  e  a resignação era  fininha.  A amnésia geral servia como uma luva aos antigos patriotas. As pessoas tinham deixado de discutir culpa e  culpados, o que nem era necessariamente mau, por isso muitos antigos patriotas puderam reciclar o discurso.







Os meus companheiros de viagem reuniram-se aos poucos na plataforma. Não era necessário ser muito observador para distinguir dois grupos. O dos abonados, que  incluía duas mulheres, um casal e três homens,  exibiam   roupas de marca já muito usadas, antiquadas mesmo, malas e mochilas, ar de quem foi deslocalizado. O GASO mudava as pessoas de uma cidade para a outra, às vezes  sem mais  antecedência do que dois ou três dias.  O lema era “ Onde está o trabalho,   estão as  pessoas”.  Uma amiga de Rita teve um bebé e recusou o abono do GASO para ir trabalhar no norte do país, a quase duzentos quilómetros da sua casa de Setraga. O marido deixou-a, os amigos  reprovaram-lhe  não só a recusa, que acharam obscena, como a decisão de ter tido  a criança. Hoje vive de esmolas.
No grupo dos mordomos  bispei um casal e  dois  homens. Bem vestidos, ela com uma mala de mão elegante, eles com pequenos  sacos de viagem a tiracolo, relógios  imponentes nos pulsos . Levavam jornais e falavam ao telemóvel. Lembro-me vagamente de que havia mais dois ou três homens inclassificáveis, talvez tipos da DINATE à civil, talvez apenas inclassificáveis.
 Como era habitual, o comboio ia quase vazio. As pessoas  não tinham grandes motivos para se deslocarem de um sítio para o outro, porque, apesar do slogan do GASO, mesmo o trabalho  para os abonados era pouco e os bilhetes de comboios eram mais caros do que os das camionetas. Pousei a mochila , recostei-me e gozei a privacidade.  O comboio arrancou e, ao fim de alguns quilómetros,  já só via mato, floresta e pequenas  povoações.
Não tinham decorrido mais de vinte  minutos quando o  toque do telemóvel me espantou. Não recebia chamadas a não ser dos meus filhos, e poucas, ou da Rita, o que naquele momento  era  improvável. Uma voz de homem chamou-me pelo nome e disse que me esperava na estação de Kara. E desligou.