segunda-feira, 4 de março de 2013


                                                 XII


Saí do restaurante e caminhei  com uma sensação agradável. A Castanhada, o lunáticos de Kara, Marília. Estava no centro político do país, um centro de que me tinha alheado nos últimos anos. Como um sobrevivente de um desastre  de carro, ainda andava com dificuldade, mas já andava outra vez. Também é verdade que não fazia ideia nenhuma para onde ir. Mais uns dias e o dinheiro acabava-se. Seja como for, o importante neste relato não é  a minha  história mas os factos que ocorreram nesse período. Já no hostel, resolvi  saber se os meus contactos da rede me responderiam.  Um deles atendeu, disse que pensou que eu tinha mudado de ideias. Chamava-se  Carlo e afinal  conhecia-o.  Fora   amigo de um amigo meu, em tempos cruzámo-nos em Setraga. Tinha uma vaga ideia de um Carlo, e à medida que os minutos passavam essa vaga  ideia reformou-se. Situei-o por volta de 2013, quando  já começara a  desinteressar-me  pela Grande Crise, pela diluição do país e pelos  debates políticos.
A memória do tempo em que conheci Carlo perturbou-me. Não se consegue escolher num desastre a pior parte, mas consegue-se apontar o instante que faz a divisão. Por exemplo, os dias felizes antes da notícia da morte de alguém amável e constituinte do nosso corpo. Ou a última vez que com ela falámos. Carlo entrava nesse cenário. Em 2013 ainda havia espera, portanto, esperança, e as pessoas ainda discutiam, defendiam ideias, exibiam ganas de dar o corpo ao manifesto.
Carlo veio buscar-me a meio da tarde. Era um tipo gordo, vestido como um adolescente,  na casa dos  quarenta.
-       Vamos para Farvira.



Favira, no Sul, a uma centena de quilómetros de Marília, foi em tempos  o centro turístico do país.  Todos os anos, centenas de milhares de turistas, sobretudo estrangeiros,   apanhavam sol, bebiam, comiam e sujavam. Os autacas destruíam o que ainda restava da paisagem natural, das praias dos pinhais, das velhas ruelas de cidades antigas. Ainda assim, a zona prosperou, porque as pessoas adiam as suspeitas e vivem das promesssas. Com a  Grande Crise, a procura de luxo aguentou-se, mas a decadência geral  foi inevitável.  Muitos  restaurantes e hotéis fecharam, sobrando algumas estâncias de luxo para os forâneos.   Essas ilhas ficaram rodedas  por um mar de  pequenos  negócios miseráveis, pensões baratas, hoteis  atamancados, escandinavos remediados perdidos de bêbados. Muitos negócios paralelos corriam à margem: droga e  mulheres à cabeça.
Era  curioso como me metiam nos carros se me levavam. Não me faziam perguntas, era tudo natural. Confrontei-o  e ele disse-me que se eu entrei no carro  é porque estava de acordo. Irrebatível.
Saímos de Marília, atravessando primeiro  as avenidas  de lojas para mordomos e pessoal da CADE e, depois, os bairros-dormitório com os seus prédios toscos agora semi-desertos. Há anos que  não fazia a saída sul de Marília e ao princípio tudo me pareceu familiar. Olhando com mais atenção,  notei que  quase todas as fábricas e armazéns tinham o parque de estacionamento vazio.  Carlo foi falando. Havia uma cena que eu tinha de ver.
A viagem ia ser  longa porque ele evitava , como toda  a gente normal, as autoestradas caríssimas. Ainda enviei uma mensagem a Laura a dizer que ia para Farvira com Carlo, um amigo.





Passámos  a ponte Europa e seguimos  pelo meio de antigos  arrozais tímidos e escondidos em campos  desertados.  Tinha feito as contas no hostel e estava preparado para qualquer coisa. Nada poderia ser pior do que andava  a viver.
Carlo era intímo de uns figurões da RENA. Não partilhava , no entanto, de forma total as ideias do movimento, o que só lhe fazia bem à saúde.



-       Até sou pela revolução e pela abolição da propriedade privada e essas merdas todas , mas seria preciso fuzilar muit agente.

Era um ponto de vista respeitável, mas extemporâneo.  Antes  de desmembrar a ordem instituída, a da CADE, seria necessário convencer primeiro as pessoas a passar anos de miséria ainda maior do que a que experimentaram em 2015 e 2016. E isso  seria  impossível. Restava, também, o pequeno detalhe da logística: armas e plasma.
Os doutrinários  do século XIX sabiam que muitos desgraçados vegetavam de tal modo que não se importavam , nada tinham a perder.  Connosco era diferente. A CADE dava assistência médica  quase gratuita, vendia os MONUCO a preços razoáveis,  as escolas  já eram todas públicas ( salvo um punhado de excpções para os mordomos  e funcionários da CADE) , porque a população ficara reduzida  a metade. O processo de desintegração foi lento, os símbolos sociais  foram desparecendo, as pessoas estiveram em risco de perder tudo. A CADE trouxe ordem e sobrevivência mínima. Que faria o povo com a revolução?
Carlo não se deixava impressionar pela realidade.  Ele e uns associados, alguns dissidentes da RENA e do NOSSO, já estavam noutra dimensão. Queriam aproveitar a cena colonial e tinham um plano especatular.
-       É  por isso que vamos a Farvira?

Não me respondeu. Continuou a conduzir o pequeno Renault e começou a olhar com afinco para o lado esquerdo da estrada.  Parámos  numa povoação  de que não recordo o nome, já com as casas brancas e baixas, uma terra limpa e sem habitantes.  Estacionou debaixo de uma grande árvore na  rua principal.  Olhou para todos os lados e ,de cada vez que  girava como um periscópio, certificava-se de que eu partilhava do cuidado conspirativo. Enganava-se. Tudo aquilo era cansativo.
- Estás à espera de ver o  KGB atrás de uma oliveira?

Foi a vez dele  não responder. Íamos comer qualquer coisa, eu disse que não, então um café. Andámos uns metros e entrámos numa tasca parada no tempo. Se lá fora  estava cinzento, lá dentro era de noite. Um velho bexigoso atrás do balcão de  madeira tumefacta, dois  ainda mais velhos sentados a uma mesa pequena  e redonda , ambos com uma taça de vinho à frente, como no antigamente.  Carlo enfiou um pão com fiambre e uma cerveja pelo enorme pescoço  abaixo, eu bebi o meu café. Inclinou a cabeça para mim e falou pausado, medindo o tom dramático.
-       Não estou a exagerar. A cena em Farvira vai ser espectacular, mas houve uma  fuga de informação, uma quebra de segurança. Alguém se chibou.








A cena em Farvira só me foi revelada  quando retomámos a viagem.  O grupo dele, a ANTENA ( Anarquia  para o Território  Nacional) , decidira assassinar um alto representante da CADE, que estava de férias num hotel de luxo a um quilómetro da cidade.
     - És doido. O que tenho  a ver com isso?  A tal cena é uma cena de ETA? Rídiculo, ineficaz, ultrapassado.
Carlo esperou que eu terminasse a minha arenga pomposa. Era , de facto, um tipo calmo. 
-       Isto foi muito discutido. Não nos move nenhum desejo de luta armada nem de comunicados com gorros na cabeça. A contece que tem de ser  dado um abanão. A violência é um meio, não um fim. As pessoas estão anestesiadas, resignadas.

Tentei  explicar-lhe que  as pessoas  anestesiadas e resignadas, uma classificação feita por quem passava o tempo nas discussões virtuais  e nas reuniões  conspirativas-boémias,  não entenderiam  qualquer ganho  no assassínio de um burocrata da CADE. Sim, eu sabia que este argumento ia  reduzir-me à condição de pragmático sem paixão, por isso  lancei-o sem esperança. Carlo mordeu o anzol.
-       Tens os vícios dos que te puseram na merda em que estás.    
Que ganho? Quem falou em ganho? Quando voltas as  costas a um patrão que te trata como merda também pensas em "ganho"?

Ter conseguido  afastá-lo da carapaça zen soube-me bem. Ele baralhava os planos. No individual, as emoções já são um ganho. No político e social, as emoções  só são um ganho se delas resultar uma prática concreta, palpável. Expliquei-lhe.
- Pensa em Churchill, durante a guerra. Toda a emoção pretendia coisas palpáveis como resistência, sacrifício, combate ao mercado negro.
Foi gasolina na fogueira.  Tirou a mão da caixa de velocidades e enfiou-a nos cabelos.
- Precisamente. Apesar de dares o exemplo de um imperialista , não está mal visto. Se conseguirmos, produziremos coisas palpáveis.

Não valia  a pena insistir. Carlo invertia o processo. Esperava que o acto definisse as emoções, apesar de lhe ter  dado o exemplo inverso. Combinámos que apenas  conheceria  algumas pessoas, juraria  silêncio e iria à minha vida.  Uma segurança conspirativa muito frouxa, e juvenil, mas aceitei.

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