domingo, 17 de fevereiro de 2013



                                                        X



Nessa altura tive a certeza  de estar numa  casa de malucos. Arrependi-me de ter vindo e concentrei a minha atenção em sair dali o mais depressa possível. O problema é que estava sem carro algures  nos arredores dos arredores. 
Enquanto o porta-voz e o louro se levantaram para buscar um documento que eu devia ver,  fiz-me de ocupado  a aparar a cinza do cigarro para o cinzeiro. Quando levantei os olhos, o louro estava à minha frente e entregou-me o papel. Começava com a mesma arenga que Piter tinha feito, mas depois arregalei os olhos. Ainda o  tenho na memória, mais letra, menos  expressão:

“ Fazer um país  é, portanto, uma obrigação. Vivemos  isolados do resto da Europa e, por infecção , do resto  do mundo. Este isolamento não é físico nem comunicacional: os estrangeiros podem chegar, ninguém nos impede de interagir electronicamente com quem quisermos.  Acontece que não é necessário:  não contamos  para nada, nada temos para oferecer, nada podemos comprar.”

Fiz uma pausa e reparei que me tinham deixado sozinho Os três  despareceram para outra parte daquela gaiola de doidos.. Continuei a ler.

“  Os antigos modelos  estão esgotados. Não vivemos sob o capitalismo porque não produzimos riqueza, não podemos  ser socialistas porque nada existe para distribuir com justiça. A pequena  oligarquia é administrativa e vive do dinheiro da CADE”.

O resto do documento era no mesmo tom e acabava prometendo uma solução. Deixara-me levar. A  solução, afinal, era uma promessa. Iguais a muitos lunáticos. Laura, outra vez na sala, como uma pantera cuidadosa, sussurrou nas minhas costas, adivinhando-me  sem dificuldade os pensamentos.
     -  Roma e Pavia não se fizeram num dia.





Apesar da humidade, fomos os quatro para um pequeno terraço nas traseiras da casa. O louro  trouxe cafés, autênticos,  e umas bolachas de importação. Uma reunião magna estava a ser preparada em Marília. Nessa altura seria revelada  a solução.Lérias.
Enquanto parlapatavam, analisei o grupo. Havia qualquer coisa que não batia certa. Nunca tinha ouvido falar deles. Podiam ser, de facto, uns fantasistas bem intencionados, mas, os  métodos, e  a forma como me encontraram revelava isso, eram eficazes. Explicaram o que queriam de mim. O louro falou, sem convicção, como se passasse uma informação trivial.  Precisavam de pessoas que não estivessem comprometidas com o regime  que ruiu nem com a CADE. Precisavam de pessoas alheadas e sem nada  a perder:  se as conseguissem convencer,  convenceriam também os abonados enterrados em dívidas e compromissos. Eu não tinha ninguém  a cargo, sabia pensar  e escrever, e vinha  a caminho de Marília. Perguntei  como sabiam tanto. Responderam-me que  não se pode mudar o que não se conhece. Virei-me para Piter, que subentendi ser o líder ( explicou-me que não tinham líderes, eram transversais ou outra osgada do género) e perguntei-lhe como se faz um país.
-       Não faz.  Ninguém faz um país sentado  a uma secretária. Mesmo os que o tentaram, recorde o Congresso de Viena, sob a direcção do grande Metternich, acabaram por ver os seus esforços desperdiçados pouco tempo depois.
Não me apetecia jogar.Insistiu.
-       Compreenda. Não se trata de inventar  um país. Queremos dar uma forma diferente ao conceito.



Continuei  a leste. Quis manter-me impávido, mas franzi os olhos num sinal infantil de socorro por mais detalhes. Piter declarou que teríamos ocasião para desenvolver o assunto na tal reunião que haveria de ter lugar em breve.
Nunca cheguei a participar na tal reunião e ainda hoje a imagino. O que fiquei a saber posteriormente  não me deu uma perspectiva ampla, mas, como contarei mais tarde, deu-me o suficiente. Em todas as alturas de definição da vida das gentes existe a tentação voltar para trás. Este retorno só na aparência é benigno na sua ilusão de querer recomeçar. Não é um começo, é uma destruição.








































O início do fim do começo






















Levaram-me à estação, os três,   sem mais discursos, e avisaram que me contactariam em breve. Cheguei a Marília no comboio do final da tarde. Não tinha a carta TPM ( transportes públicos modulares) , por isso fui a pé até à parça que sabia ter pensões baratas. Alojei-me no Hostel Vitória , estendi-me na cama e adormeci. Já passava das nove quando fui comer  uma bifana engolida com uma cerveja pelo  preço de um jantar nos velhos tempos. Não me apeteceu  telefonar aos meus contactos  da rede, estava enfartado de discussões, política e estética conspirativa.
Nessa noite, enquanto  jantava, angustiado, estava a ser preparado – do outro lado da cidade-   o que ficou conhecido como  a Castanhada. Numa  área residencial de qualidade ( ARQA), onde residiam muitos funcionários superiores da CADE e alguns mordomos,  instalou-se  um obscuro  departamento,   a Comissão de Normalização Identitária. Esta catacumba burocrática,  que dependia do mais mediático Gabinete de Relações Exteriores, responsável pelas autorizações de saída do país, ocupava uma moradia luxuosa e tinha sempre dois homens da DINATE ao portão.







Tanto quanto se soube depois, um velho vendedor de castanhas extraviou-se e foi para a zona com o museu ambulante  -  o fogareiro instalado num carrinho de  mão. Talvez o homem tenha pensado que ao final da tarde, alguns dos abastados habitantes do bairro, ao chegarem  a casa, quisessem comprar um  cartucho de castanhas para aperitivo ou sobremesa. Tanto quanto se soube depois, o homem tear  sido espancado, ou



talvez só empurrado, ou apenas insultado, pelso dois seguranças  do edifício da CADE. Por coincidência, um activista da RENA tinha sido convocado ao edifício para  regularizar  um assunto q e assistiu a tudo. Num ápice, estvavam à porta da bisonha Comissão dezenas de  membros da RENA. Espancaram os seguranças, forçaram  aentrada  na casa, destruiram o qu e puderam a desfraldaram uma bandeira da resistência na varanda do gabinte  principal. Os homens da DINATE , quando chegaram, ficaram surpreendidos porque  um extraordinário ajuntamento  , a zona ficava  fora de mão e era  residencial, como  já disse, organizara-se  na rua defronte da moradia ocupada. O que  era para ser  uma simples operação de limpeza  e detenção deum punhado de activistas transformou-se numa enorme confusão. Disse-se mais tarde que o velho vendedor de castanhs era muito querido num bairro popular contíguo à zona residencial, o que explica a aliança entre gente comum e os activistas da RENA. A batalha campal prosseguiu, com cada vez
mais reforços da DINATE e cada vez mais manifestantes.  Nunca se chegou a saber ao certo  o que manifestavam e isso permitiu o crescimento da lenda ( ou da narrativa, como dizem os  escreventes de hoje)







O que distinguiu a Castanhada de outras desordens não foi de certeza o resultado: alguns feridos , dois ou três  severos, várias detenções e um gabinete  arrasado. Nos dias seguintes, o incidente, ou os incidentes, para ser mais excato, começaram a ser discutidos .  Os sítios  do congressos e das univesidades e a tertúlia electrónicas   foram albergando uam teoria.  O que se



passara  deu  corpo, e finalmente nome, à situação do país. Já não se tratava da guetização, mas de  algo mais profundo: o país  estva colonizado. Os radicais do NOSSO e da RENA pegaram  logo na ideia e desenvolveram-na, indo  desenterrar os textos dos teórico spós-colnialistas do século passado,  como Said e Fanon. Não se sabe  ao certo quem deu o mote, mas a ideia infectou rapidamente.
Tudo isto foi-me contado uns dias depois. Fiquei na pensão,  adoentado. Uma gripe ou um distúrbio psicossomático, como dizem os psiquiatras,  causado pela saída de casa, de Setraga e do GASO, pela reunião em Kara, pela angústia geral que me assolava. Bebi chá e torradas nos cafés da praça Alegro e passei  as tardes a dormitar. Na manhã de 27 acordei com o telemóvel. Era Laura e estava à minha espera para almoçar no Zazou. Sim, já tinha ouvido falar, um dos poucos restaurantes charmosos  e informais  que sobreviveram, frequentado pelos chefes das redacções, filhos de mordomos, turistas  e beau monde em geral.





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