terça-feira, 26 de março de 2013

                                                                           XIV




O hippie velho estendeu-me  a mão, seca e suja, e ofereceu-me uma cadeira. Os garotos saíram da cama sem uma palavra, apanharam um saco, ou coisa do género, do chão e abandonaram o quarto com Carlo. 
O velho tinha o cabelo branco penteado para trás e usava uma túnica florida gasta que mal cobria umas  sandálias arrebentadas.  Carlo não teve tempo  de fazer queixa de mim, por isso o homem entendeu  apresentar-se. Nunca saberei por que motivo, Zapa, era esse o seu nome, confidenciou-me detalhes  intímos da sua infância. Fiquei  com  a impressão de que quis justificar, de alguma forma, o uso da violência contra os poderosos. Escolheu um caminho  enleante. Resumido, o que me recordo, talvez  já acrescentado por mim, porque se o passado é um país estrangeiro, a memória é uma amiga infiel:


A mãe abandonou-o, tinha ele  quatro anos, para ir com um bancário reformado ( soube depois), o pai deixou de  espancá-lo logo a seguir, porque emigrou para a Suiça .
Ainda viveu com o tio paterno, um homem   bom, casado com uma mulher  má como as cobras e dois primos: um quase da sua idade, outro ainda bebé.  Durou pouco a experiência, porque o ordenado do tio, escriturário, era pequeno e as dívidas  muitas.  Lembra-se de dormir  num anexo minúsculo da cozinha, num colchão fino sobre o cimento.
Aos cinco anos,   passou para o outro lado da cidade, para casa de uma tia , a bem dizer, tia-avó, religiosa e solteirona, professora primária reformada. Quando  o tio o levou, num domingo - nunca mais esqueceu - , não entrou logo. Ficou no carro a olhar para a porta. Viu uma mulher de preto, magra, com toutiço e um nariz de bruxa. A mulher mandou entrar  o tio e ficou para trás a  olhar  para ele com olhos de águia. Lembra-se de ter pensado que o tio se devia ter enganado na porta. Era  o primeiro dia de Dezembro do ano de 1964.
Instalou-se como uma infecção. A tia destinou-lhe um dos dois quartos da casa, uma casa igual ás outras na correnteza da rua.
 Era um bairro   construído  há uma dezena de anos para alojar funcionários públicos, sobretudo professores.
Chegava da escola, fazia os deveres e ficava a atirar uma bola à parede do pequeno  pátio húmido até a tia o chamar para jantar.  Uma sopa de couve e feijão, sempre,  talvez um bife pregado, as mais das vezes massa com frango ou fiambre. Nem um beijo. 
Não podia receber amigos em casa, televisão só aos sábados ou quando a tia adormecia  na cadeira .
Quando começou a ficar homenzinho, a tia entendeu por bem arranjar-lhe um espécie de pai auxiliar. Começou a ir todos os sábados almoçar a casa do sacristão, o senhor Eduardo. Era um homem  magro, amarelo e com cara de coelho.  Ao fim de algum tempo, talvez a partir da quarta ou quinta vez, o senhor Eduardo começou a recebe-lo com um abraço muito forte. Depois o abraço passou a ser mais suave e o senhor Eduardo puxava-o e esfregava  as suas partes baixas nas  dele.
 Ao cabo de dois ou três meses, a cerimónia  que antecedia o almoço era sempre a mesma: sentavam-se num canapé de palhinha,  encostado  a uma parede da sala de jantar, o senhor Eduardo  tirava o zequinha do Zapa , como    chamava ao pénis,   para fora, massajava-o  e chupava-o. Nessa altura teria Zapa  uns onze anos.
Uma vez disse à tia que não queria voltar a casa do sacristão. A tia ferrou-lhe duas lambadas. Soube então que um dia devolveria, com juros, a estaladas. No entretanto, aceitou a explicação que  a tia, a seguir ao método educativo, lhe deu: o senhor Eduardo estava  ajudá-los e não havia nenhuma razão para recusar.
Os dias não existiam. A escola era aborrecida porque não lhe  ensinava o que precisava de saber. Tinha agora treze anos e não sabia por que  se  lembrava bem do   pai, não sabia por que  a mãe fora embora, não sabia se gostava do que o senhor Eduardo lhe fazia. Sabia, isso era certo, que os miúdos da escola o achavam diferente. Certa vez , umas garotas estavam a contar piadas porcas e metu-se  na conversa. Declarou que nenhum pénis cabe por inteiro na boca de uma pessoa e que é necessário  fazer como nos gelados. As garotas ficaram especadas a olhar para ele e desde então nunca mais  o deixaram aproximar. Os rapazes desprezavam-no. Vestia-se com roupa de há cinquenta anos, tinha um buço horrível, o cabelo cortado à tijela, era gordo e ria a despropósito.
Num belo dia chegou a casa e viu a tia sentada na sala acompanhada de uma mulher que reconheceu mal. Era a irmã do sacristão, que tinha vindo a dar a triste notícia da morte do  senhor Eduardo. Parece que de ataque cardíaco fulminante. Sentou-se em frente delas ainda com os cadernos sobre os joelhos e voltou  a reconhecer aquela sensação estranha de não sentir nada. A mulher era amiga da irmã do sacristão. Toda a gente estava espantada, porque o senhor Eduardo era um homem muito pacato, nada a dado  a comoções, levava uma vida  tão sossegada.
Pediu licença para ir para o quarto  fazer os trabalhos de casa. Há anos que conhecia o senhor Eduardo, o caminho para casa do senhor Eduardo, as mãos do senhor Eduardo, a boca do senhor Eduardo, o cheiro do senhor Eduardo. Durante esse  tempo habituara-se. O homem era bom para ele. Ele não sabia o que era um pai, mas sabia o que era uma tia insuportável. O senhor Eduardo não lhe batia, ajudava-o nos trabalhos da escola, nos testes e dava-lhe dinheiro. Tanto quanto soube, quem pagava os
livros era o sacristão e boa parte da roupa, senão toda, era oferecida também por ele.
Sentou-se na  cama e soube o que ia pensar. Já andava a pensá-lo  há uns meses. Ouvia os colegas, via  a televisão e os filmes, os poucos que a tia, já adormecida na velha cadeira de madeira, não sabia que ele via. Era era homossexual, como se diz agora? Maricas, como diziam na escola?  Nunca pediu nada, nunca disse nada. Às vezes, quando o senhor Eduardo lhe perguntava se ele tinha gostado, dizia que não sabia. Não poder falar com ninguém , não poder contar, entristecia-o. Sentia que  devia haver uma explicação, que talvez outros rapazes vivessem o mesmo.Talvez fizesse parte da vida.
Outras vezes decidia que não. Aquilo só acontecia porque vivia com  a tia, não tinha uma família normal, igual à dos colegas. 





Incomodava-o não ter a certeza se o que o senhor Eduardo lhe fizera  era normal. Subentendia que não, porque via na escola, nas conversas dos  rapazes e raparigas. Ele  e o senhor Eduardo  eram o quê?
Foi para a pequena secretária, abriu o caderno e um livro de exercícios de matemática e ficou assim. A tia e  a mulher continuavam  a murmurar na sala e ele apreciou estar  sozinho.  Não que a morte do senhor Eduardo o entristecesse, não sentia nada, mas alguma lhe faria falta, amanhã, sábado.
Foi à  sala dizer à tia que ia dar uma volta, precisava de arejar a cabeça da matemática. As duas mulheres olharam para ele  como um aborrecimento ( a tia olhava sempre), mas a tia, para grande espanto dele, não o proibiu.
Enquanto contou  isto tudo - e mais detalhes que  a minha memória engoliu -, Zapa falou como um sacerdote.  Voz pausada, corpo ora direito, ora  repoltreado na cadeira , cigarro enfiado nos dedos  acastanhados. Resolveu dar-me uma pista
-       Fugi nessa noite. Desde então que fujo. Dos que me ajudam e dos que me entregam.


A mensagem nem subliminar era.  Se te vendem por um punhado de euros, não podes esperar muito mais do que Zapa recebeu do sacristão.  Ainda assim a teoria da fuga  atortemelou-me. No meio daquela salgalhada – um suposto atentado em preparação – onde cabia a fuga? 
 O quarto era triste, Zapa era triste, os miúdos da cama  eram patéticos, Carlo era irrelevante. Aquela gente não matava sequer   um ladrão de galinhas. Alguma coisa estava errada, soube-o na altura, mas não consegui  reagir.
A conferência psicopolítica  acabou quando Zapa se ergueu da cadeira. Virou-me  as costas e sentou-se  de frente para  a janela, em meditação. Sai do quarto, fui pelas escadas, atravessei o pequeno lóbi a  cheguei à rua. Nem Carlo nem os miúdos.

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