domingo, 21 de abril de 2013

                                                                      XVI


Quase sem dinheiro e  sem sítio para onde ir, sentei-me, naquele final de tarde, num banco  de uma pequena e sossegada  praça de Farvira. Enquanto fumava, tentava afastar ainda mais os últimos  laços. Rita, os miúdos, a minha infância na minha cidade, tudo engolia um cliché marcial: o da irrealidade. Trabalhos  de Procusto, porque sabia bem  o que era irreal: aquele cigarro.
Comecei a reparar  na mudança  de energia quando um homem escorregou. Levantou-se e desatou a correr ( provavelmente já viria a correr, pelo que apenas retomou  a disposição) .  Notei uma jolda apressada que entrou num café a dois passos do meu poiso.  Curioso, mantive-me quieto no meu panóptico e continuei a registar. Passado um bocado,  ouviram-se sirenes ao longe. Das ruas  vizinhas à praça afluiram grupos e pessoas isoladas. Alguns  paravam  a conversar, outros continuavam, excitados. Resolvi sair do meu  posto de observação e dirigi-me ao café .
Passei pelo grupo que conversava à entrada e não consegui entender bem a origem do  tumulto, mas qualquer coisa acontecera  em Marília. Já dentro do café,  a algazarra era enorme e isso surpreendeu-me.  Não estava habituado a uma excitação assim sem ser por causa de futebol. Na televisão apareceu  o comissário nacional  do Interior, na altura, Ante  Sylba.  O comissariado tinha sido  cercado  por populares que, não se sabe como, acabaram por entrar no edifício  e proclamaram a  independência nacional e a demissão de todos os comissários presentes. O do Interior estava no gabinete central da CADE,  por isso escapou. Fazia agora uma alocução ao país. Lamentava  a situação e prometia ao regresso à normalidade, que seria inevitável. O sítio electrónico do Comissariado Nacional, segundo me disse uma mulher de cabelos nervosos ao meu lado, que consultava o seu smartphone, também publicou um comunicado a garantir o retorno  à normalidade. Não dizia era quando nem como.






A normalidade  ganhara aura  de mito. As pessoas tinham sido forçadas a tempos anormais, a uma sucessão de tempos anormais. Primeiro, a partir de 2012, uma crise económica acentuadíssima. Depois, entre 2013 e 2016, assistiram, e participaram, na derrocada de vários suportes da sociedade como sempre a tinham conhecido. A dissolução dos partidos, a emigração em massa de gente que em condições normais nunca emigraria, o desligar dos laços com a Europa rica ou, pelo menos, remediada. Finalmente, nos primeiros meses de 2017, a vida sem governo, sem parlamento, sem chefe do Estado, sem Estado. Neste caldo, a chegada da CADE, e  a intervenção directa do Governo Central Europeu,  a todos os títulos anormal, aparecia como a semente do regresso à …normalidade.
A lógica dos acontecimentos em Marília  pressupunha o envio de forças da DINATE para o edifício do Comissariado e era isso que aguardávamos. Estranhamente, não havia notícia da demonstração de força.  O que era estranho era a nossa amnésia. O ordenamento legal do país, imposto pela própria CADE,  interditava  a intervenção da DINATE em manifestações de carácter político, sempre que estas tivessem como alvo instituições exclusivamente nacionais e não  pusessem em risco pessoas ou bens. Um homem com meia careca e uma cerveja acabada  na mão  pareceu ler-me o pensamento.
      -  Pois é. Os gajos não podem fazer nada  a menos que os comissários apresentem queixa ou os chamem.
Parecia de malucos. A invasão do Comissariado fora  pacífica, sem armas, e os comissários  sequestrados  não puderam, ou não quiseram, pedir socorro. Ante Sylba  não estava lá, por isso, legalemente, não podia recorrer à DINATE. Talvez não fosse de malucos, talvez  fosse genial.
Em rodapé, na emissão de um dos canais, correu a legenda: A DINATE já está a caminho da  rua  Helmut Khol. Pensei que era bluff. O Governo Central Europeu não permitira um banho de sangue,  ainda por cima  sem legitimidade de actuação. As colónias tinham de ser respeitadas  nos seus  resquícios de soberania envergonhada.
Durante o resto da tarde, e pela noite dentro, viveu-se  um clima de ansiedade  e expectativa. Os media e a internet  foram dando  notícias de um jogo de surdos. Os jipes da DINATE estabeleceram um cordão de segurança à volta do edifício da rua Helmut Kohl, mas os populares dentro do Comissariado não esmoreciam.  A certa altura, já toda  a gente no café  se comportava como  amigos ou, pelo menos, conhecidos. 
Numa mesa livre, sentei-me a debicar amendoins e bebi uma  cerveja com um casal de engenheiros reformados. Pensei que ia ouvir a milésima  versão da queda do nível de vida, da pensão reduzida  a metade, do racionamento de coisas antes supérfluas. Enganei-me. A mulher, com os olhos agarrados à televisão e as mão debaixo da mesa , discursava baixinho com se tivesse um duende no colo
-       Oxalá não se rendam. Seriam um exemplo e nós  não sabemos o que isso é.

O marido  concordava. Se é para sermos pobres e miseráveis, que  o sejamos  por nós.  Entendi  dizer-lhe que sem a CADE seríamos  pior do que pobres, porque , por exemplo, eles os dois nem as cortadas  reformas  manteriam. Foi então que  a mulher , já não me recordo do nome, Ana, ou Anabela, ou Bela, me perguntou em que país  é que eu vivia.
       -  Se a alternativa entre ser uma  colónia pobre ou uma nação miserável não se coloca, como raio lê você o século  vinte ? Em que somos diferentes  da Indochina ou da Rodésia?







Não a contrariei, porque seria cruel. A diferença para as nações emergentes, de que ela continuou a dar-me exemplos, era  que nós já experimentáramos  o conforto e o desenvolvimento. Pior, fomos aculturados por mais do que um império, habituámo-nos a um sentimento de pertença a uma Europa rica. A teoria de que não havia nada  a perder não funcionava, porque havia  a memória anterior à perda e essa memória , a dos bons tempos, funcionava como uma cola que nos agarrava ao passado. O medo de romper  era essa cola. O meu pensamento voltou a ser lido e ela voltou à carga como um dentista tenaz.
      -  É verdade que ainda temos alguma coisa e também é verdade que nos lembramos de ter muita  coisa. Mas você pensa que um povo é uma caixa registadora? Que não tem orgulho?

Pensava, mas não lho disse. A ausência de orgulho  não deve ser sublinhada.  Fui à rua fumar um cigarro, afastando-me um pedaço da gente que se apinhava  à entrada. Quando regressava, estava um  rapaz a chamar as pessoas. Havia um autocarro  para Marília, íamos para uma manifestação. 
Recuei, já fora tempo de manifestações, muitas manifestações. Não deram em nada, pura energia desperdiçada. Uma mulher  percebeu a minha recusa e tive de me explicar.
-       Não adianta nada...
A mulher, gorducha, enfiada num fato de treino, desatou aos berros.
    -       Este é mordomo!Não quer ir  Olhem este! Está a
espiar-nos o filho da puta! Estás a espiar-nos, cabrão?

Não tive tempo de reagir.  Quando pensei nisso já me tinham agarrado. Lembro-me de ver um tipo à minha frente e de levar uma cabeçada, lembro-me da vozeada  e do cenário demosténico no meu campo de visão já bem turvo.  Cai de joelhos e ainda me ferraram dois ou três pontapés nas costelas.  Entrei numa espécie de amok e e acordei  sentado  no passeio,  encostado a uma parede e com sangue na boca. O nariz doía-me  como se mo estivessem a apertar com um alicate. Depois  senti  uma frescura fabulosa causada pela água que alguém  meu lado me despejava sobre  a cabeça.
-       Não o posso largar que você mete-se logo em sarilhos.
Laura não era uma visão porque eu via tudo desfocado. Ajudou-me  a levantar e caminhou comigo. Na direcção oposta  à que tomámos  ainda ouvi vozes  exaltadas mas mais fracas.
-       Não há autocarro nenhum. Alguns  enfardelaram a trouxa  e vão meter-se nos carros para Marília. Venha comigo.
Levou-me  para um  um carro. Sentou-me no lugar do pendura e arrancámos. Parou numa estação de serviço, comprou  álcool e pensos e tratou-me do nariz.
-       Paramos no caminho para beber um café. Não é conveniente ir ao hospital.




Já era de noite e  adormeci pelo caminho. Quando acordei rodávamos  em plena autoestrada. Um luxo ao qual não estava habituado. Naquele momento era-me indiferente. Parámos numa área de serviço e engoli dois cafés oferecidos por Laura. Fui actualizado sobre a rua Helmut Kohl. A DINATE cercara a sede do  Comissariado e os activistas, ou lá o que eram,  ficaram lá dentro. As comunicações via telemóvel não acrescentavam muito. Era de novo um impasse. Laura não me explicou como me encontrou naquela praça em Farvira.
-Andamos  por todo o lado, sabemos tudo. Você agora é  dos nossos.

Grogue como me sentia , não argumentei. À medida que engolíamos os   quilómetros, de olhos fechados, para evitar conversas, fui pensando. Já era  a segunda vez que  Laura e os amigos me encontravam e eu não era assim tão estúpido. Pensei ser  impossível um grupo de lunáticos estar tão bem informado. Por outro lado, esse interesse  em alguém como eu ultrapassava-me. Claro que  tinham  arregimentado mais gente. Em Kara, durante  a conversa mole, Piter disse-me que  havia outros sectores. Uma espécie de células,  para usar uma linguagem do passado. Fosse como fosse, eu não valia nada, era incompreensível  tamanho desvelo.
Devíamos estar  a pouco mais de dez quilometros de Marília quando liguei o rádio do carro. Passados uns minutos, o boletim informativo abriu com a reportagem sobre a rua Kohl, mas logo a seguir as palavras paralisaram-me. Tinham sido detidos elementos terroristas, em Farvira, que planeavam um atentado contra uma alta figura da administração da CADE. A operação fora bem sucedida  graças a elementos infiltrados. Diversa documentação, computadores pessoais  e telemóveis  apreendidos permitiriam mais detenções num futuro breve. Existiria uma rede  que se preparava para executar  um número indeterminado de  de pessoas ligados à CADE.
Olhei para Laura que permanecia  impassível, com as mãos no volante, sem um sinal de tensão no perfil que eu podia  examinar.
-       Abra o porta-luvas. Tem uma pasta vermelha. É para si.

Sem comentários:

Enviar um comentário