XV
Já
tinha a minha dose. Foram dias de
fracasso total. Telefonei a Laura,
que não atendeu. Não valia a pena deixar outra mensagem porque nada tinha para dizer. Sentia-me
estúpido e desorientado.
Estava
como o coelho na couve e nem dei pela aproximação dos
dois tipos. Vestidos
informalmente, de aspecto normalíssimo, discretos e educados, identificaram-se
como sendo da SEPARA, a Secção de Prevenção das Actividades Recessivas, um departamento da DINATE. As actividades recessivas eram aquelas que impediam o país de ficar menos pobre do que já estava. Originalmente pensada para problemas comezinhos, como contrabando, contrafacção e afins, depressa evoluiu para a vigilância de comportamentos. O que era um comportamento recessivo? Por exemplo, conspirar para matar um burocrata europeu.Breton não faria melhor.
Sr.
Gose, está detido para averiguações ao abrigo da lei ROSETE , faça o favor de
nos acompanhar. Nem mais nem menos. A lei ROSETE
( Reorganização da Segurança do
Território) previa a detenção , sem ordem judicial, por um período de quarenta
e oito horas, de qualquer suspeito de atentar contra a segurança do país.
Peguntaram-me se trazia alguma arma, o que me fez sorrir de tal forma a revista
foi sucinta.
Acompanhei-os a pé durante uns metros e entrámos num
carro sem identificação. Entalaram-me entre eles no banco de trás e o motorista arrancou. Sabia que ia para o posto de atendimento , um
eufemismo para a esquadra da DINATE local. Cumpridas as formalidades ,
escoltaram-me até um pequena sala , muito confortável, com uma mesa de
reuniões e três sofás individuais.
Sentamo-nos nestes e um dos inspectores
quis saber o que fazia eu
no hotel Marisol, com quem me tinha encontrado e que instruções
recebera. Respondi que tinha ido
com um amigo conhecer umas pessoas.
-
O senhor não está a
entender.
Não
estava , não. Levantaram-se e deixaram-me sozinho mais de meia hora. Regressaram e um deles pousou o tablet nos joelhos e começou a ler. Todos os nomes. O da Rita e dos meus filhos, o que faziam, onde estavam etc. Para além
do facto de terem feito o trabalho de casa, não pressupus mais nada. Mantive-me
calado.
-
O senhor Gose sabe que
naquele hotel está alojado um indíviduo que já foi condeado pelo crime de
atentado contra a segurança
nacional?
O
Zapa a atentar conta a segurança nacional? Sorri de novo. Não, não sabia, nunca o tinha visto antes.
Informaram-me que sabiam quem me
tinha levado lá e também sabiam os
nomes dos garotos do charro.
Quiseram saber onde estavam esses também terríveis suspeitos. Não sabia. O mais
velho dos inspectores, que até aí não tinha aberto a boca, começou a falar.
Tinha um sotaque indeterminado, talvez alemão, ou
holandês.
- Temos a
zona em vigilânt porque chegou ontem a um resort daqui um alto person do vosso governo.
Vosso
governo. Uma dupla mentira, porque
nem era nosso nem era governo. Já
estava habituado, todo estávamos já habituados a este dialecto.
-
As suas explicações são
insuficientes. O seu amigo Carles Pau desapareceu, mas vamos encontar ele. O
senhor esteve com o seu amigo Michel Cato-Zapa no hotel quarto.
O
linguajar siginificava apenas que não tinham nada contra mim. Não era proibido
visitar pessoas, mesmo que fossem ex-condenados. O outro polícia, o mais novo,
com sobrancelhas negras carregadas e uma espécie de msoca no queixo, avançou
noutra direcção.
- Por que
motivo o senhor Gose se demitiu das suas funções em Setraga? Por que motivo a
sua mulher não sabia de si? Por
que motivo veio para Farvira com Carles Pau?
A
coisa passou para outro plano, um plano bastante desconfortável, porque também eu queria saber as respostas a
essas perguntas. É difícil mentir quando não se sabe a verdade.
Fiquei
detido para averiguações apenas vinte
e quatro horas. Não
averiguaram nada, porque não havia nada para averiguar. No dia 28, à tardinha,
entregaram-me a mochila, com tudo
revolvido, as chaves de casa, que não sabia por que raio as tinha
trazido e o telemóvel, de certeza
violado com método.
O
funcionário levou-me para outra sala, mais pequena, só com uma mesa e duas cadeiras. Mandou-me sentar e
esperar. O telemóvel estava sem
bateria. Deve ter passado uma hora, ou quase. Por fim entrou uma mulher, ruiva,
cinquentona. Disse chamar-se
Freda, era austríaca e estavava colocada na DINATE. Falava com sotaque, mas falava bem.
-
A partir de agora o
senhor Gose está impedido de
exercer qualquer função que dependa do GASO. Não poderá dar
aulas nem trabalhar em nenhuma estrutura pública. Abrimos um inquérito. Ao
abrigo da lei ROSETE, o senhor é
considerado supeito de ter atentado contra a segurança do território.
Quis
saber de que me acusavam: associação criminosa. Era rídiculo, porque Zapa já cumprira
pena e, tanto quanto eu sabia, não estava acusado de nada.
A
lei ROSETE era uma forma expedita de estrangular a revolta, digamos, mais
intelectualizada. Os vândalos e a canalha simples, que partiam montras ou assaltavam bancos,
contiuavam a ser julgados pelos
tribunais comuns. Os opositores
mais sofisticados, e alguns terroristas, passavam pelo crivo da SEPARA e de um tribunal especial.
Estas
medidas já eram discutidas antes da chegada da CADE, nos anos de anarquia
política e autogestão. É verdade que não chegou a haver caos nem guerra nas ruas, mas isso não impediu
as pessoas de julgar que tal era possível. Assim, em 2017, as medidas
extraordinárias foram aceites como
inevitáveis . O facto de ter sido
a CADE a colocá-las em prática permitiu o habitual abanar de cauda. Alguns protestos tímidos, muita prosápia nos jornais, mas nenhuma oposição real. O velho argumento do " não há alternativa" funcionou com uma metralhadora bem oleada: "Se houver desordem, os mínimos essenciais não são garantidos e depois como é?". Ou seja, os mordomos e as marionetas mediáticas asseguravam preferir uma colónia bem administrada à anarquia. Os
intelectuais, os artistas e os editorialistas oficiosos, que nos tempos da
autonomia, em que fazíamos as
nossas leis e elegíamos os nossos deputados, refilavam com qualquer
prepotência judicial, entregavam-se por esta altura a um sonambulismo
conveniente.
Percebi
que não podia fazer nada. Freda foi
simpática, ofereceu-me um regrigerante e umas bolachas e despediu-se.
- Nós só queremos o melhor para si e para este país.
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