O
hippie velho estendeu-me a mão,
seca e suja, e ofereceu-me uma cadeira. Os garotos saíram da cama sem uma
palavra, apanharam um saco, ou coisa do género, do chão e abandonaram o quarto
com Carlo.
O
velho tinha o cabelo branco penteado para trás e usava uma túnica florida gasta
que mal cobria umas sandálias
arrebentadas. Carlo não teve
tempo de fazer queixa de mim, por
isso o homem entendeu
apresentar-se. Nunca saberei por que motivo, Zapa, era esse o seu nome,
confidenciou-me detalhes intímos
da sua infância. Fiquei com a impressão de que quis justificar, de
alguma forma, o uso da violência contra os poderosos. Escolheu um caminho enleante. Resumido, o que me recordo,
talvez já acrescentado por mim,
porque se o passado é um país estrangeiro, a memória é uma amiga infiel:
A
mãe abandonou-o, tinha ele quatro
anos, para ir com um bancário reformado ( soube depois), o pai deixou de espancá-lo logo a seguir, porque
emigrou para a Suiça .
Ainda
viveu com o tio paterno, um homem
bom, casado com uma mulher
má como as cobras e dois primos: um quase da sua idade, outro ainda
bebé. Durou pouco a experiência,
porque o ordenado do tio, escriturário, era pequeno e as dívidas muitas. Lembra-se de dormir
num anexo minúsculo da cozinha, num colchão fino sobre o cimento.
Aos
cinco anos, passou para o
outro lado da cidade, para casa de uma tia , a bem dizer, tia-avó, religiosa e
solteirona, professora primária reformada. Quando o tio o levou, num domingo - nunca mais esqueceu - , não
entrou logo. Ficou no carro a olhar para a porta. Viu uma mulher de preto,
magra, com toutiço e um nariz de bruxa. A mulher mandou entrar o tio e ficou para trás a olhar para ele com olhos de águia. Lembra-se de ter pensado que o
tio se devia ter enganado na porta. Era
o primeiro dia de Dezembro do ano de 1964.
Instalou-se
como uma infecção. A tia destinou-lhe um dos dois quartos da casa, uma casa
igual ás outras na correnteza da rua.
Era
um bairro construído há uma dezena de anos para alojar
funcionários públicos, sobretudo professores.
Chegava
da escola, fazia os deveres e ficava a atirar uma bola à parede do pequeno pátio húmido até a tia o chamar para
jantar. Uma sopa de couve e
feijão, sempre, talvez um bife
pregado, as mais das vezes massa com frango ou fiambre. Nem um beijo.
Não
podia receber amigos em casa, televisão só aos sábados ou quando a tia
adormecia na cadeira .
Quando
começou a ficar homenzinho, a tia entendeu por bem arranjar-lhe um espécie de
pai auxiliar. Começou a ir todos os sábados almoçar a casa do sacristão, o
senhor Eduardo. Era um homem
magro, amarelo e com cara de coelho. Ao fim de algum tempo, talvez a partir da quarta ou quinta
vez, o senhor Eduardo começou a recebe-lo com um abraço muito forte. Depois o
abraço passou a ser mais suave e o senhor Eduardo puxava-o e esfregava as suas partes baixas nas dele.
Ao cabo de dois ou três meses, a
cerimónia que antecedia o almoço
era sempre a mesma: sentavam-se num canapé de palhinha, encostado a uma parede da sala de jantar, o senhor Eduardo tirava o zequinha do Zapa , como chamava ao pénis, para fora, massajava-o e chupava-o. Nessa altura teria
Zapa uns onze anos.
Uma
vez disse à tia que não queria voltar a casa do sacristão. A tia ferrou-lhe
duas lambadas. Soube então que um dia devolveria, com juros, a estaladas. No
entretanto, aceitou a explicação que
a tia, a seguir ao método educativo, lhe deu: o senhor Eduardo
estava ajudá-los e não havia
nenhuma razão para recusar.
Os
dias não existiam. A escola era aborrecida porque não lhe ensinava o que precisava de saber.
Tinha agora treze anos e não sabia por que se lembrava bem
do pai, não sabia por
que a mãe fora embora, não sabia
se gostava do que o senhor Eduardo lhe fazia. Sabia, isso era certo, que os
miúdos da escola o achavam diferente. Certa vez , umas garotas estavam a contar
piadas porcas e metu-se na
conversa. Declarou que nenhum pénis cabe por inteiro na boca de uma pessoa e
que é necessário fazer como nos
gelados. As garotas ficaram especadas a olhar para
ele e desde então nunca mais o
deixaram aproximar. Os rapazes desprezavam-no. Vestia-se com roupa de há
cinquenta anos, tinha um buço horrível, o cabelo cortado à tijela, era gordo e
ria a despropósito.
Num
belo dia chegou a casa e viu a tia sentada na sala acompanhada de uma mulher
que reconheceu mal. Era a irmã do sacristão, que tinha vindo a dar a triste
notícia da morte do senhor
Eduardo. Parece que de ataque cardíaco fulminante. Sentou-se em frente delas
ainda com os cadernos sobre os joelhos e voltou a reconhecer aquela sensação estranha de não sentir nada. A
mulher era amiga da irmã do sacristão. Toda a gente estava espantada, porque o
senhor Eduardo era um homem muito
pacato, nada a dado a comoções,
levava uma vida tão sossegada.
Pediu
licença para ir para o quarto
fazer os trabalhos de casa. Há anos que conhecia o senhor Eduardo, o
caminho para casa do senhor Eduardo, as mãos do senhor Eduardo, a boca do
senhor Eduardo, o cheiro do senhor Eduardo. Durante esse tempo habituara-se. O homem era bom
para ele. Ele não sabia o que era um pai, mas sabia o que era uma tia
insuportável. O senhor Eduardo não lhe batia, ajudava-o nos trabalhos da
escola, nos testes e dava-lhe dinheiro. Tanto quanto soube, quem pagava os
livros
era o sacristão e boa parte da roupa, senão toda, era oferecida também por ele.
Sentou-se
na cama e soube o que ia pensar.
Já andava a pensá-lo há uns meses.
Ouvia os colegas, via a televisão
e os filmes, os poucos que a tia, já adormecida na velha cadeira de madeira,
não sabia que ele via. Era era homossexual, como se diz agora? Maricas, como
diziam na escola? Nunca pediu
nada, nunca disse nada. Às vezes, quando o senhor Eduardo lhe perguntava se ele
tinha gostado, dizia que não sabia. Não poder falar com ninguém , não poder
contar, entristecia-o. Sentia que
devia haver uma explicação, que talvez outros rapazes vivessem o
mesmo.Talvez fizesse parte da vida.
Outras
vezes decidia que não. Aquilo só acontecia porque vivia com a tia, não tinha uma família normal,
igual à dos colegas.
Incomodava-o
não ter a certeza se o que o senhor Eduardo lhe fizera era normal. Subentendia que não, porque
via na escola, nas conversas dos
rapazes e raparigas. Ele e
o senhor Eduardo eram o quê?
Foi
para a pequena secretária, abriu o caderno e um livro de exercícios de
matemática e ficou assim. A tia e
a mulher continuavam a
murmurar na sala e ele apreciou estar
sozinho. Não que a morte do
senhor Eduardo o entristecesse, não sentia nada, mas alguma lhe faria falta,
amanhã, sábado.
Foi
à sala dizer à tia que ia dar uma
volta, precisava de arejar a cabeça da matemática. As duas mulheres olharam
para ele como um aborrecimento ( a
tia olhava sempre), mas a tia, para grande espanto dele,
não o proibiu.
Enquanto
contou isto tudo - e mais detalhes
que a minha memória engoliu -,
Zapa falou como um sacerdote. Voz
pausada, corpo ora direito, ora
repoltreado na cadeira , cigarro enfiado nos dedos acastanhados. Resolveu dar-me uma pista
-
Fugi nessa noite. Desde
então que fujo. Dos que me ajudam e dos que me entregam.
A
mensagem nem subliminar era. Se te
vendem por um punhado de euros, não podes esperar muito mais do que Zapa
recebeu do sacristão. Ainda assim
a teoria da fuga atortemelou-me.
No meio daquela salgalhada – um suposto atentado em preparação – onde cabia a
fuga?
O
quarto era triste, Zapa era triste, os miúdos da cama eram patéticos, Carlo era irrelevante. Aquela gente não
matava sequer um ladrão de
galinhas. Alguma coisa estava errada, soube-o na altura, mas não consegui reagir.
A
conferência psicopolítica acabou
quando Zapa se ergueu da cadeira. Virou-me as costas e sentou-se
de frente para a janela, em
meditação. Sai do quarto, fui pelas escadas, atravessei o pequeno lóbi a cheguei à rua. Nem Carlo nem os miúdos.
Sem comentários:
Enviar um comentário