XII
Saí do restaurante e caminhei com uma sensação agradável. A Castanhada, o lunáticos de Kara, Marília. Estava no centro político do país, um centro de que me tinha alheado nos últimos anos. Como um sobrevivente de um desastre de carro, ainda andava com dificuldade, mas já andava outra vez. Também é verdade que não fazia ideia nenhuma para onde ir. Mais uns dias e o dinheiro acabava-se. Seja como for, o importante neste relato não é a minha história mas os factos que ocorreram nesse período. Já no hostel, resolvi saber se os meus contactos da rede me responderiam. Um deles atendeu, disse que pensou que eu tinha mudado de ideias. Chamava-se Carlo e afinal conhecia-o. Fora amigo de um amigo meu, em tempos cruzámo-nos em Setraga. Tinha uma vaga ideia de um Carlo, e à medida que os minutos passavam essa vaga ideia reformou-se. Situei-o por volta de 2013, quando já começara a desinteressar-me pela Grande Crise, pela diluição do país e pelos debates políticos.
Saí do restaurante e caminhei com uma sensação agradável. A Castanhada, o lunáticos de Kara, Marília. Estava no centro político do país, um centro de que me tinha alheado nos últimos anos. Como um sobrevivente de um desastre de carro, ainda andava com dificuldade, mas já andava outra vez. Também é verdade que não fazia ideia nenhuma para onde ir. Mais uns dias e o dinheiro acabava-se. Seja como for, o importante neste relato não é a minha história mas os factos que ocorreram nesse período. Já no hostel, resolvi saber se os meus contactos da rede me responderiam. Um deles atendeu, disse que pensou que eu tinha mudado de ideias. Chamava-se Carlo e afinal conhecia-o. Fora amigo de um amigo meu, em tempos cruzámo-nos em Setraga. Tinha uma vaga ideia de um Carlo, e à medida que os minutos passavam essa vaga ideia reformou-se. Situei-o por volta de 2013, quando já começara a desinteressar-me pela Grande Crise, pela diluição do país e pelos debates políticos.
A
memória do tempo em que conheci Carlo perturbou-me. Não se consegue escolher
num desastre a pior parte, mas consegue-se apontar o instante que faz a
divisão. Por exemplo, os dias felizes antes da notícia da morte de alguém
amável e constituinte do nosso corpo. Ou a última vez que com ela falámos.
Carlo entrava nesse cenário. Em 2013 ainda havia espera, portanto, esperança, e
as pessoas ainda discutiam, defendiam ideias, exibiam ganas de dar o corpo ao
manifesto.
Carlo
veio buscar-me a meio da tarde. Era um tipo gordo, vestido como um
adolescente, na casa dos quarenta.
-
Vamos para Farvira.
Favira,
no Sul, a uma centena de quilómetros de Marília, foi em tempos o centro turístico do país. Todos os anos, centenas de milhares de
turistas, sobretudo estrangeiros,
apanhavam sol, bebiam, comiam e sujavam. Os autacas destruíam o que
ainda restava da paisagem natural, das praias dos pinhais, das velhas ruelas de
cidades antigas. Ainda assim, a zona prosperou, porque as pessoas adiam as
suspeitas e vivem das promesssas. Com a
Grande Crise, a procura de luxo aguentou-se, mas a decadência geral foi inevitável. Muitos restaurantes e hotéis fecharam, sobrando algumas estâncias
de luxo para os forâneos.
Essas ilhas ficaram rodedas
por um mar de pequenos negócios miseráveis,
pensões baratas, hoteis
atamancados, escandinavos remediados perdidos de bêbados. Muitos
negócios paralelos corriam à margem: droga e mulheres à cabeça.
Era curioso como me metiam nos carros se me
levavam. Não me faziam perguntas, era tudo natural. Confrontei-o e ele disse-me que se eu entrei no
carro é porque estava de acordo.
Irrebatível.
Saímos
de Marília, atravessando primeiro
as avenidas de lojas para
mordomos e pessoal da CADE e, depois, os bairros-dormitório com os seus
prédios toscos agora semi-desertos. Há anos que não fazia a saída sul de Marília e ao princípio tudo me
pareceu familiar. Olhando com mais atenção, notei que quase
todas as fábricas e armazéns tinham o parque de estacionamento vazio. Carlo foi falando. Havia uma cena
que eu tinha de ver.
A
viagem ia ser longa porque ele
evitava , como toda a gente
normal, as autoestradas caríssimas. Ainda enviei uma mensagem a Laura a dizer
que ia para Farvira com Carlo, um amigo.
Passámos a ponte Europa e seguimos pelo meio de antigos arrozais tímidos e escondidos em
campos desertados. Tinha feito as contas no hostel e
estava preparado para qualquer coisa. Nada poderia ser pior do que andava a viver.
Carlo
era intímo de uns figurões da RENA. Não partilhava , no entanto, de forma total as ideias do
movimento, o que só lhe fazia bem à saúde.
-
Até sou pela revolução e
pela abolição da propriedade privada e essas merdas todas , mas seria preciso
fuzilar muit agente.
Era
um ponto de vista respeitável, mas extemporâneo. Antes de
desmembrar a ordem instituída, a da CADE, seria necessário convencer primeiro
as pessoas a passar anos de miséria ainda maior do que a que experimentaram em
2015 e 2016. E isso seria
impossível. Restava, também, o pequeno detalhe da logística: armas e plasma.
Os
doutrinários do século XIX sabiam
que muitos desgraçados vegetavam de tal modo que não se importavam , nada
tinham a perder. Connosco era
diferente. A CADE dava assistência médica
quase gratuita, vendia os MONUCO a preços razoáveis, as escolas já eram todas públicas ( salvo um punhado de excpções para
os mordomos e funcionários da
CADE) , porque a população ficara reduzida a metade. O processo de desintegração foi lento, os símbolos
sociais foram desparecendo, as
pessoas estiveram em risco de perder tudo. A CADE trouxe ordem e sobrevivência
mínima. Que faria o povo com a revolução?
Carlo
não se deixava impressionar pela realidade. Ele e uns associados, alguns dissidentes da RENA e do NOSSO,
já estavam noutra dimensão. Queriam
aproveitar a cena colonial e
tinham um plano especatular.
-
É por isso que vamos a Farvira?
Não me respondeu. Continuou a conduzir o pequeno Renault e começou a olhar com afinco para o lado esquerdo da estrada. Parámos numa povoação de que não recordo o nome, já com as casas brancas e baixas, uma terra limpa e sem habitantes. Estacionou debaixo de uma grande árvore na rua principal. Olhou para todos os lados e ,de cada vez que girava como um periscópio, certificava-se de que eu partilhava do cuidado conspirativo. Enganava-se. Tudo aquilo era cansativo.
- Estás à espera de ver o KGB atrás de uma oliveira?
Foi
a vez dele não responder. Íamos
comer qualquer coisa, eu disse que não, então um café. Andámos uns metros e
entrámos numa tasca parada no tempo. Se lá fora estava cinzento, lá dentro era de noite. Um velho bexigoso
atrás do balcão de madeira
tumefacta, dois ainda mais velhos
sentados a uma mesa pequena e
redonda , ambos com uma taça de vinho à frente, como no antigamente. Carlo enfiou um pão com fiambre e uma
cerveja pelo enorme pescoço
abaixo, eu bebi o meu café. Inclinou a cabeça para mim e falou pausado,
medindo o tom dramático.
-
Não estou a exagerar. A
cena em Farvira vai ser espectacular, mas houve uma fuga de informação, uma quebra de segurança. Alguém se
chibou.
A
cena em Farvira só me foi
revelada quando retomámos a
viagem. O grupo dele, a ANTENA (
Anarquia para o Território Nacional) , decidira assassinar um alto
representante da CADE, que
estava de férias num hotel de luxo a um quilómetro da cidade.
- És doido. O que
tenho a ver com isso? A tal cena é uma cena de ETA? Rídiculo,
ineficaz, ultrapassado.
Carlo
esperou que eu terminasse a minha arenga pomposa. Era , de facto, um tipo calmo.
-
Isto foi muito
discutido. Não nos move nenhum desejo de luta armada nem de comunicados com
gorros na cabeça. A contece que tem de ser dado um abanão. A violência é um meio, não um fim. As
pessoas estão anestesiadas, resignadas.
Tentei explicar-lhe que as pessoas anestesiadas e resignadas, uma classificação feita por quem passava o tempo nas discussões
virtuais e nas reuniões conspirativas-boémias, não entenderiam qualquer ganho no assassínio de um burocrata da CADE.
Sim, eu sabia que este argumento ia
reduzir-me à condição de pragmático sem paixão, por isso lancei-o sem esperança. Carlo mordeu o
anzol.
-
Tens os vícios dos que
te puseram na merda em que estás.
Que ganho? Quem falou em ganho? Quando voltas as costas
a um patrão que te trata como merda também pensas em "ganho"?
Ter
conseguido afastá-lo da carapaça
zen soube-me bem. Ele baralhava os planos. No individual, as emoções já são um
ganho. No político e social, as emoções
só são um ganho se delas resultar uma prática concreta, palpável.
Expliquei-lhe.
- Pensa em Churchill, durante a guerra. Toda a emoção
pretendia coisas palpáveis como resistência, sacrifício, combate ao mercado negro.
Foi
gasolina na fogueira. Tirou a mão
da caixa de velocidades e enfiou-a nos cabelos.
- Precisamente. Apesar de dares o exemplo de um
imperialista , não está mal visto. Se conseguirmos, produziremos coisas
palpáveis.
Não valia a pena insistir. Carlo invertia o processo. Esperava que o acto definisse as emoções, apesar de lhe ter dado o exemplo inverso. Combinámos que apenas conheceria algumas pessoas, juraria silêncio e iria à minha vida. Uma segurança conspirativa muito frouxa, e juvenil, mas aceitei.
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