XI
Levaram-me
à estação, os três, sem mais
discursos, e avisaram que me contactariam em breve.
Cheguei a Marília no
comboio do final da tarde. Não tinha a carta TPM ( transportes públicos
modulares) , por isso fui a pé até à praça que sabia ter pensões baratas.
Alojei-me no Hostel Vitória , estendi-me na cama e adormeci. Já passava das
nove quando fui comer uma bifana
engolida com uma cerveja pelo
preço de um jantar nos velhos tempos. Não me apeteceu telefonar aos meus contactos da rede, estava enfartado de
discussões, política e estética conspirativa.
Nessa
noite, enquanto jantava sem fome, estava a ser preparado – do outro lado da cidade- o que ficou conhecido como a Castanhada. Numa
área residencial de qualidade ( ARQA), onde residiam muitos funcionários
superiores da CADE, e alguns mordomos,
instalou-se um obscuro departamento - a Comissão de Normalização Identitária. Esta catacumba
burocrática, que dependia do mais
mediático Gabinete de Relações Exteriores, responsável pelas autorizações de
saída do país, ocupava uma moradia luxuosa e tinha sempre dois homens da DINATE
ao portão.
Tanto
quanto se soube depois, um velho vendedor de castanhas , outra vez as castanhas, extraviou-se e foi para
a zona com o museu ambulante
- o fogareiro instalado num
carrinho de mão. Talvez o homem
tenha pensado que ao final da tarde, alguns dos abastados habitantes do bairro,
ao chegarem a casa, quisessem
comprar um cartucho de castanhas
para aperitivo ou sobremesa. Tanto quanto se soube depois, o homem terá sido espancado, ou talvez
só empurrado, ou apenas insultado, pelos dois seguranças do edifício da CADE.
Por coincidência, um activista da RENA tinha sido convocado ao edifício para regularizar um assunto e assistiu a tudo. Num ápice, estavam à porta da bisonha Comissão dezenas de membros da RENA. Espancaram os seguranças, forçaram a entrada na casa, destruiram o que puderam e desfraldaram uma bandeira da resistência na varanda do gabinete principal. Os homens da DINATE , quando chegaram, ficaram surpreendidos porque um extraordinário ajuntamento - a zona ficava fora de mão e era residencial - organizara-se na rua defronte da moradia ocupada. O que era para ser uma simples operação de limpeza e detenção de um punhado de activistas transformou-se numa enorme confusão. Disse-se mais tarde que o velho vendedor de castanhs era muito querido num bairro popular contíguo à zona residencial, o que explica a aliança entre gente comum e os activistas da RENA. A batalha campal prosseguiu, com cada vez mais reforços da DINATE e cada vez mais manifestantes lutadores Nunca se chegou a saber ao certo o que manifestavam e isso permitiu o crescimento da lenda ( ou da narrativa, como dizem os escreventes de hoje).
Por coincidência, um activista da RENA tinha sido convocado ao edifício para regularizar um assunto e assistiu a tudo. Num ápice, estavam à porta da bisonha Comissão dezenas de membros da RENA. Espancaram os seguranças, forçaram a entrada na casa, destruiram o que puderam e desfraldaram uma bandeira da resistência na varanda do gabinete principal. Os homens da DINATE , quando chegaram, ficaram surpreendidos porque um extraordinário ajuntamento - a zona ficava fora de mão e era residencial - organizara-se na rua defronte da moradia ocupada. O que era para ser uma simples operação de limpeza e detenção de um punhado de activistas transformou-se numa enorme confusão. Disse-se mais tarde que o velho vendedor de castanhs era muito querido num bairro popular contíguo à zona residencial, o que explica a aliança entre gente comum e os activistas da RENA. A batalha campal prosseguiu, com cada vez mais reforços da DINATE e cada vez mais manifestantes lutadores Nunca se chegou a saber ao certo o que manifestavam e isso permitiu o crescimento da lenda ( ou da narrativa, como dizem os escreventes de hoje).
O
que distinguiu a Castanhada de outras desordens não foi de certeza o resultado:
alguns feridos , dois ou três
severos, várias detenções e um gabinete arrasado. Nos dias seguintes, o incidente, ou os incidentes,
para ser mais exacto, começaram a ser discutidos . Os sítios do
congressos, das univesidades e as tertúlia electrónicas foram albergando uma teoria. O que se passara deu corpo, e finalmente nome, à situação do país. Já não se
tratava da guetização, mas de algo
mais profundo: o país estava
colonizado. Os radicais do NOSSO e da RENA pegaram na ideia e desenvolveram-na, indo desenterrar os textos dos teóricos pós-colnialistas do século passado,
como Said e Fanon. Não se sabe
ao certo quem deu o mote, mas a ideia infectou rapidamente.
Tudo isto foi-me contado uns dias depois. Fiquei na pensão, adoentado. Uma gripe ou um distúrbio psicossomático, como dizem os psiquiatras, causado pela saída de casa, de Setraga e do GASO, pela reunião em Kara, pela angústia morna que me assolava. Bebi chá e torradas nos cafés da praça Alegro e passei as tardes a dormitar. Na manhã de 27 acordei com o telemóvel. Era Laura e estava à minha espera para almoçar no Zazou. Sim, já tinha ouvido falar, um dos poucos restaurantes charmosos e informais que sobreviveram, frequentado pelos chefes das redacções, filhos de mordomos, turistas e beau monde em geral.
Tudo isto foi-me contado uns dias depois. Fiquei na pensão, adoentado. Uma gripe ou um distúrbio psicossomático, como dizem os psiquiatras, causado pela saída de casa, de Setraga e do GASO, pela reunião em Kara, pela angústia morna que me assolava. Bebi chá e torradas nos cafés da praça Alegro e passei as tardes a dormitar. Na manhã de 27 acordei com o telemóvel. Era Laura e estava à minha espera para almoçar no Zazou. Sim, já tinha ouvido falar, um dos poucos restaurantes charmosos e informais que sobreviveram, frequentado pelos chefes das redacções, filhos de mordomos, turistas e beau monde em geral.
Deixei
passar o resto da manhã, tomei um duche e um café que o estômago suportou e lá
me arrastei até ao restaurante. Encontrei-a numa mesa no meio da sala principal,
o que me deixou desconfortável e exposto. Perguntou-me o que andara a fazer e expliquei-lhe a moléstia. Directa ao assunto, quis
saber o que eu pensava da tese da colonização. Não podia dizer muito. Não
tinha visto televisão e os jornais que
espreitara só referiram os
acontecimentos sem segundas leituras.
Os
media funcionavam assim desde a chegada da CADE. Salvo
excepções individuais, ou seja, de
alguns jornalistas dentro do sistema mediático , e colectivas – pequenas
publicações em papel e sítios da net alimentados por jornalistas independentes
-, os media espelhavam a voz dos
donos do país. Não era novidade nenhuma. Num passado já distante, quando o país se submeteu a outros regimes de força, os jornalistas ( e os juízes) também obedeceram.
Se houvesse uma mudança brusca, o que era
improvável, os media adaptar-se-iam rapidamente, saltando e pulando às
ordens dos novos comandos.
Ouvi
a sua opinião e não fiquei impressionado. A CADE, como braço armado, no sentido
poético, do Governo Central Europeu, ocupou o país e as suas elites dirigiam os
assuntos locais. Estávamos, portanto, colonizados. Tive dúvidas sobre a base da coisa, repeti a minha cassete.
-
É verdade que o governo
europeu dirige os nossos assuntos, porque nos sustenta, mas não retira nenhum
proveito, pelo menos directo. Sim , a teoria do cordão sanitário, de zonas
tampão que não afectem o equliíbrio dos países estabilizados. Isso não é
colonização. Tem de se apurar afórmula e, sobretudo, temos de perceber para que é que ela
serve.
Pegou
no copo de um alvarinho galego,
muito bom, por sinal, mas não bebeu.
-
É para coisas dessas que
contamos consigo. Para aprofundar.
O
elogio implícito deixou-me indiferente. Noutros tempos teria funcionado, mas
agora não produzia efeito nenhum. Quis saber do grupo de Kara. Enquanto esperavámos pela sobremesa, uma
simples banana para o meu estômago em convalescença ( lembro-me, porque ainda
estava fraco,) ela decidiu falar. Recordo o relato,
já que o afixei na memória com pregos rijos. Fingi que não me interessava, mas
interessei-me.
Laura
foi anestesista num hospital em
Dúrio nos anos da Grande Crise.
Começou a fazer cada vez menos
horas e a ganhava cada vez
menos. Em 2016, concorreu para vagas em Inglaterra e na Alemanha, mas não
conseguiu os lugares. Vivia com um
irmão, desempregado e metido em sarilhos com a polícia por causa de protestos e
arruaças. Nesse ano envolveu-se com um advogado, rebelde e romântico, que conheceu
durante um dos processos do irmão. Engravidou. O tipo , de início,
disse-lhe que uma criança era um
raio de sol num futuro escuro, mas passadas umas semanas, desapareceu . Laura
soube depois que o homem fora para
Marília traabalhar com as equipas de vanguarda da CADE. Hoje é um mordomo que colabora com a DINATE ,
na área de apoio jurídico.
Laura deprimiu com tudo isto: sem dinheiro, sem o namorado e pai da criança, com um irmão imprestável. Abortou espontaeamente. Sem nada para fazer, e zangada com tudo, resolveu atirar-se às tertúlias electrónicas. Numa dessas cruzou-se com Piter. Ao fim de algum tempo já não falavam sobre a ruína do regime, a confusão, as alternativa. Falavam sobre cinema e poesia pré-rafaelita.
Laura deprimiu com tudo isto: sem dinheiro, sem o namorado e pai da criança, com um irmão imprestável. Abortou espontaeamente. Sem nada para fazer, e zangada com tudo, resolveu atirar-se às tertúlias electrónicas. Numa dessas cruzou-se com Piter. Ao fim de algum tempo já não falavam sobre a ruína do regime, a confusão, as alternativa. Falavam sobre cinema e poesia pré-rafaelita.
A
seguir a esta oleosa anamnese íntima, a mulher
abriu um bocadinho a janela
sobre o grupo de Kara. Piter tinha sido jornalista num diário muito popular até
ao início da Grande Crise. Nunca ouvi falar dele. Estava
sem emprego há quase dois anos,
fazia biscates intelectuais, como lhes chamava: trabalhos para colegas ainda
empregados, uma ou outra
coisa para as televisões, pequenas traduções. Tinha dinheiro porque o pai era um conhecido industrial de
hotelaria muito conhecido mesmo. Agora, depois da histórica clínica dela, a do amigo. Eu não era psiquiatra.
-
Laura, a sua história
não me interessa.
A
reacção dela foi de fibra. Exibiu o poder de encaixe de um Joe Frasier . Tocou-me com pé ao longo
da perna. Bebeu o vinho que tinha no copo e olhou-me com sal.
-
Fomo-nos juntado. Uns e outros. O Piter apresentou-me a amigos Temos mais miolos do que os
congressos e a resistências todas
multiplicadas por mil.
Queremos fazer tudo de
novo, queremos inventar um país.
Enfadado com o regresso do sintoma Professor Pardal, lembrei-lhe que isso que isso era conversa velha, parecia
saída das campanhas eleitorais do
antigamente. Só faltava as saudades do futuro.
-
Não está a compreender,
Gil. Você ainda não entendeu, pois não?
Tinha a carteira pendurada nas costas da
cadeira. Tirou-a, abriu-a e entregou-me uma folha de papel. Estava numerada,
não recordo o número, mas parecia
ser uma conclusão. Ofereceu-ma. Li e guardei-a:
Inventar
o país, só por acaso corresponde
aos limites do nosso território actual. Partiremos deles.
Inventar
um país significará redesenhar toda a estrutura social. Não queremos democracia
nem igreja única. Não queremos a velha estrutura judiciária, financeira e
administrativa. Não queremos sequer um país como vocês estão habituados a
imaginar.
Pretendemos,
dentro dos limites físicos actuais do nosso território, uma comunidade de
comunidades. Cada cidade, cada vila, cada aldeia, será um orgão. Cada orgão
decidirá como viver e não aceitará ordens de terceiros. Se vier a haver mil
línguas diferentes, paciência. Se vier a haver mil orientações legais
diferentes, paciência Se vier a haver mil concepções diferentes de educação,
paciência.
Será
um páis de países , se quiserem utilizar a antiga linguagem. Será a única forma
de sobrevivência par aum território exposto a mil feridas. O que reunirá este
espaço? A língua e a História. São almas
suficientes e nenhum burocrata
europeu as poderá apagar.
Olhei
por cima das mesas, para a rua.
Era fantástica a imaginação das pessoas. Utilizavam elementos patrióticos para
justificar o desmembramento do país.
Não me deixou pagar o almoço. Agradeci-lhe e disse que precisava de descansar um bocado. Ela compreendeu e prometeu contactar-me mais tarde.
Não me deixou pagar o almoço. Agradeci-lhe e disse que precisava de descansar um bocado. Ela compreendeu e prometeu contactar-me mais tarde.
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