domingo, 24 de fevereiro de 2013


                                                      XI

Levaram-me à estação, os três,   sem mais discursos, e avisaram que me contactariam em breve. 
Cheguei a Marília no comboio do final da tarde. Não tinha a carta TPM ( transportes públicos modulares) , por isso fui a pé até à praça que sabia ter pensões baratas. Alojei-me no Hostel Vitória , estendi-me na cama e adormeci. Já passava das nove quando fui comer  uma bifana engolida com uma cerveja pelo  preço de um jantar nos velhos tempos. Não me apeteceu  telefonar aos meus contactos  da rede, estava enfartado de discussões, política e estética conspirativa.
Nessa noite, enquanto  jantava sem fome, estava a ser preparado – do outro lado da cidade-   o que ficou conhecido como  a Castanhada. Numa  área residencial de qualidade ( ARQA), onde residiam muitos funcionários superiores da CADE, e alguns mordomos,  instalou-se  um obscuro  departamento -   a Comissão de Normalização Identitária. Esta catacumba burocrática,  que dependia do mais mediático Gabinete de Relações Exteriores, responsável pelas autorizações de saída do país, ocupava uma moradia luxuosa e tinha sempre dois homens da DINATE ao portão.
Tanto quanto se soube depois, um velho vendedor de castanhas , outra vez as castanhas, extraviou-se e foi para a zona com o museu ambulante  -  o fogareiro instalado num carrinho de  mão. Talvez o homem tenha pensado que ao final da tarde, alguns dos abastados habitantes do bairro, ao chegarem  a casa, quisessem comprar um  cartucho de castanhas para aperitivo ou sobremesa. Tanto quanto se soube depois, o homem terá  sido espancado, ou talvez só empurrado, ou apenas insultado, pelos dois seguranças  do edifício da CADE. 
Por coincidência, um activista da RENA tinha sido convocado ao edifício para  regularizar  um assunto  e assistiu a tudo. Num ápice, estavam à porta da bisonha Comissão dezenas de  membros da RENA. Espancaram os seguranças, forçaram  a entrada  na casa, destruiram o que puderam e desfraldaram uma bandeira da resistência na varanda do gabinete  principal. Os homens da DINATE , quando chegaram, ficaram surpreendidos porque  um extraordinário ajuntamento  - a zona ficava  fora de mão e era  residencial -  organizara-se  na rua defronte da moradia ocupada. O que  era para ser  uma simples operação de limpeza  e detenção de um punhado de activistas transformou-se numa enorme confusão. Disse-se mais tarde que o velho vendedor de castanhs era muito querido num bairro popular contíguo à zona residencial, o que explica a aliança entre gente comum e os activistas da RENA. A batalha campal prosseguiu, com cada vez mais reforços da DINATE e cada vez mais manifestantes lutadores  Nunca se chegou a saber ao certo  o que manifestavam e isso permitiu o crescimento da lenda ( ou da narrativa, como dizem os  escreventes de hoje).







O que distinguiu a Castanhada de outras desordens não foi de certeza o resultado: alguns feridos , dois ou três  severos, várias detenções e um gabinete  arrasado. Nos dias seguintes, o incidente, ou os incidentes, para ser mais exacto, começaram a ser discutidos .  Os sítios  do congressos,  das univesidades e as tertúlia electrónicas   foram albergando uma teoria.  O que se passara  deu  corpo, e finalmente nome, à situação do país. Já não se tratava da guetização, mas de  algo mais profundo: o país  estava colonizado.  Os radicais do NOSSO e da RENA pegaram   na ideia e desenvolveram-na, indo  desenterrar os textos dos teóricos pós-colnialistas do século passado,  como Said e Fanon. Não se sabe  ao certo quem deu o mote, mas a ideia infectou rapidamente. 
Tudo isto foi-me contado uns dias depois. Fiquei na pensão,  adoentado. Uma gripe ou um distúrbio psicossomático, como dizem os psiquiatras,  causado pela saída de casa, de Setraga e do GASO, pela reunião em Kara, pela angústia morna que me assolava. Bebi chá e torradas nos cafés da praça Alegro e passei  as tardes a dormitar. Na manhã de 27 acordei com o telemóvel. Era Laura e estava à minha espera para almoçar no Zazou. Sim, já tinha ouvido falar, um dos poucos restaurantes charmosos  e informais  que sobreviveram, frequentado pelos chefes das redacções, filhos de mordomos, turistas  e beau monde em geral.
Deixei passar o resto da manhã, tomei um duche e um café que o estômago suportou e lá me arrastei até ao restaurante. Encontrei-a numa mesa no meio da sala principal, o que me deixou desconfortável e exposto. Perguntou-me o  que andara  a fazer e expliquei-lhe a moléstia. Directa ao assunto, quis saber o que eu pensava da tese da colonização. Não podia dizer muito. Não tinha visto televisão e os jornais que  espreitara  só referiram os acontecimentos sem segundas leituras.
Os media  funcionavam assim  desde a chegada da CADE. Salvo excepções individuais, ou seja, de  alguns jornalistas dentro do sistema mediático , e colectivas – pequenas publicações em papel e sítios da net alimentados por jornalistas independentes -,  os media espelhavam a voz dos donos do país. Não era novidade nenhuma. Num passado já distante, quando o país  se submeteu  a outros regimes de força, os jornalistas ( e os juízes) também obedeceram. Se houvesse uma mudança brusca, o que era  improvável, os media adaptar-se-iam rapidamente, saltando e pulando às ordens  dos novos comandos.
Ouvi a sua opinião e não fiquei impressionado. A CADE, como braço armado, no sentido poético, do Governo Central Europeu, ocupou o país e as suas elites dirigiam os assuntos locais. Estávamos, portanto, colonizados. Tive dúvidas sobre  a base da coisa, repeti a minha cassete.
-       É verdade que o governo europeu dirige os nossos assuntos, porque nos sustenta, mas não retira nenhum proveito, pelo menos directo. Sim , a teoria do cordão sanitário, de zonas tampão que não afectem o equliíbrio dos países estabilizados. Isso não é colonização. Tem de se apurar afórmula e, sobretudo, temos de perceber  para  que é que ela  serve.
Pegou no copo de um alvarinho  galego, muito bom, por sinal, mas não bebeu.
-       É para coisas dessas que contamos consigo. Para aprofundar.
O elogio implícito deixou-me indiferente. Noutros tempos teria funcionado, mas agora não produzia efeito nenhum. Quis saber  do grupo de Kara. Enquanto esperavámos pela sobremesa, uma simples banana para o meu estômago em convalescença ( lembro-me, porque ainda estava fraco,) ela decidiu falar. Recordo o relato, já que o afixei na memória com pregos rijos. Fingi que não me interessava, mas interessei-me.
Laura foi anestesista  num hospital em Dúrio nos anos da Grande Crise.  Começou a fazer cada vez menos  horas e a ganhava  cada vez menos. Em 2016, concorreu para vagas em Inglaterra e na Alemanha, mas não conseguiu  os lugares. Vivia com um irmão, desempregado e metido em sarilhos com a polícia por causa de protestos e arruaças. Nesse ano envolveu-se com um advogado, rebelde  e romântico,  que conheceu  durante um dos processos do irmão. Engravidou. O tipo , de início, disse-lhe que uma criança  era um raio de sol num futuro escuro, mas passadas umas semanas, desapareceu . Laura soube depois que o homem fora  para Marília  traabalhar  com as equipas de vanguarda  da CADE. Hoje é um mordomo  que colabora  com  a DINATE , na área de apoio jurídico. 
Laura deprimiu com tudo isto: sem dinheiro, sem o namorado e pai da criança, com um irmão imprestável. Abortou espontaeamente. Sem nada para fazer, e zangada com tudo, resolveu atirar-se às tertúlias electrónicas. Numa dessas cruzou-se  com Piter. Ao fim de algum tempo já não   falavam sobre  a ruína do regime, a confusão, as alternativa.  Falavam sobre cinema e poesia pré-rafaelita.







A seguir a esta oleosa anamnese íntima, a mulher  abriu  um bocadinho a janela sobre o grupo de Kara. Piter tinha sido jornalista num diário muito popular até ao início da Grande  Crise. Nunca ouvi falar dele. Estava sem emprego há quase dois  anos, fazia biscates intelectuais, como lhes chamava: trabalhos para colegas ainda empregados, uma ou outra coisa para as televisões, pequenas traduções.  Tinha dinheiro porque o pai era um conhecido industrial de hotelaria muito conhecido mesmo. Agora, depois da histórica clínica dela, a do amigo. Eu não era psiquiatra.
-       Laura, a sua história não me interessa.
A reacção dela foi de fibra. Exibiu o poder de encaixe de um  Joe Frasier . Tocou-me com pé ao longo da perna. Bebeu o vinho que tinha no copo e olhou-me com sal.
-    Fomo-nos juntado. Uns e outros. O Piter apresentou-me  a amigos Temos mais miolos do que os congressos e a resistências todas  multiplicadas por mil.  Queremos  fazer tudo de novo, queremos  inventar  um país.
Enfadado com o regresso do sintoma Professor Pardal,  lembrei-lhe que isso  que isso era conversa velha, parecia saída das  campanhas eleitorais do antigamente. Só faltava  as  saudades do futuro.
-       Não está a compreender, Gil. Você ainda não entendeu, pois não?
Tinha  a carteira pendurada nas costas da cadeira. Tirou-a, abriu-a e entregou-me uma folha de papel. Estava numerada, não recordo o número, mas parecia  ser uma conclusão. Ofereceu-ma. Li e guardei-a:


Inventar o país, só por acaso  corresponde aos limites do nosso território  actual. Partiremos deles.
Inventar um país significará redesenhar toda a estrutura social. Não queremos democracia nem igreja única. Não queremos a velha estrutura judiciária, financeira e administrativa. Não queremos sequer um país como vocês estão habituados a imaginar.
Pretendemos, dentro dos limites físicos actuais do nosso território, uma comunidade de comunidades. Cada cidade, cada vila, cada aldeia, será um orgão. Cada orgão decidirá como viver e não aceitará ordens de terceiros. Se vier a haver mil línguas diferentes, paciência. Se vier a haver mil orientações legais diferentes, paciência Se vier a haver mil concepções diferentes de educação, paciência.
Será um páis de países , se quiserem utilizar a antiga linguagem. Será a única forma de sobrevivência par aum território exposto a mil feridas. O que reunirá este espaço? A língua e a História. São almas  suficientes e nenhum burocrata  europeu as poderá  apagar.

Olhei por cima das mesas, para  a rua. Era fantástica a imaginação das pessoas. Utilizavam elementos patrióticos para justificar o desmembramento do país. 
Não me deixou pagar o almoço. Agradeci-lhe e disse que precisava de descansar  um bocado. Ela compreendeu e prometeu  contactar-me  mais tarde.








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