terça-feira, 12 de fevereiro de 2013


                                                    IX


Pegou-me pelo braço e pediu-me que a  acompanhasse. Chamava-se  Laura  e queria falar comigo, coisa que eu já tinha percebido. A ideia era andarmos  até ao carro  que estava estacionado no lado oposto ao da estação.  Achei melhor ficar calado, porque nada tinha para dizer. Os anos  de inacção e  rotina depressiva tiraram-me  a capacidade de reagir. Não sabia  a  língua, não sabia a inflexão certa da voz. Chegámos ao carro, afinal já fora  do parque de estacionamento da estação. Entrámos para  o  japonês, ou coreano, não me recordo,  preto e  bem usado, e as explicações começaram:
     -  Saber o seu número  foi simples. Temos um amigo no GASO de   Setraga. Agora vamos conhecer uma  pessoas, ‘tá bem?

Arrancou suavemente como uma amiga que vem buscar um amigo.  Resumindo, Laura e uns amigos tinham organizado uma base de dados  sobre pessoas que pudessem fazer qualquer coisa  de diferente. Tudo muito simples, muito natural. Excepto saberem que  eu estava num comboio em direcção a Marília:
        -Falámos  hoje de manhã com a sua mulher.
Também sabiam o número dela através  dos registos do GASO. Muita coisa sabiam estes amigos.  Ela guiava concentrada mas não na condução. Dir-se-ia que me observava através da orelha direita, pequenina  e bem desenhada, deixada livre pelo cabelo apanhado. Um cabelo preto mortal, a pele bem tratada, lábios  grossos, dedos  finos   e longos. Não sei por que bufido do meu cérebro, lembrei-me que fosse médica.
- Fui anestesista. Há muito tempo.





A viagem continuou. Passámos  Kara,  com os seus prédios miseráveis de janelas e varandas pequeninas,  ruas largas, e agora inúteis,  e passeios esburacados. Reparei nas pessoas que se equilibravam nas bermas e lembro-me de ter pensado  como talvez  pouco tivessse mudado. Antes da Grande Crise  conhecera terras assim,  baldeadas à ilharga das grande cidades, onde não parecia haver tempo para mais nada a não ser trabalhar comer e dormir. Era como se agora fosse o mesmo mas em versão emagrecida.
A estrada  ficou rural de repente e o trânsito era  insignificante. Resolvi que era tempo.
       -   Vamos lá ver. O que é que querem de mim?
Explicou-me que não explicava. O grupo  debatia em conjunto. Não tinham a certeza se eu aceitava o convite. Ainda faltava um bocado, por isso tentei recuperar informação que me tivesse escapado.  Debate? A política estava reduzida às reuniões pomposas  dos congressos e às ameaças da RENA e do NOSSO.  O país estava estrangulado, semi-deserto e as pessoas queriam apenas sobreviver. Talvez fosse mais um grupo de lunáticos enrodilhados em discussões geopolíticas e doutrinárias. O que eu não percebia era o que raio poderiam querer de mim.  Sim, já tinha sido um bocadinho de tudo – escritor (de artigos), jornalista, blogger – mas agora era um técnico  de educação a meio tempo, desatento profissional,  sem porto de abrigo e sem norte. E velho.
      -    Cinquenta anos não é velho.
Ela disse isto com o entusiasmo do  homem da bilheteira do estádio a vender um jogo das reservas. Abrandou junto do portão de uma quinta, seguiu por uma vereda e estacionou no pátio de uma casa de campo com muito bom ar. Branca, com heras verdes e umas escadinhas que davam acesso à porta , garned e castanha,  onde estavam à minha espera dois homens. Também bem vestidos como mordomos, cabelo curto, um já calvo e entroncado, o outro loirito e magro, ou talvez só alto. Agradeceram a minha vinda, cumprimentaram-me com um aperto de mão amigável e entrámos para um pequeno corredor. Daí fomos para uma grande sala cheia de livros, com uma lareira e sofás  luxuosos. O calvo entroncado chamava-se Piter, o louro respondia  pelo  nome de António. Sentámo-nos todos, eu num individual, os dois  homens num maior.    Laura ficou de pé, atrás de mim,  e passou-me um cinzeiro, o que lhe ficou muito bem. O  entroncado começou:
-       Comos sabe, estamos num impasse.
Respondi que talvez. Não ligou.
-       O país já não existe. Morreu. Isto tem de ser percebido não importa a propaganda da CADE, do Governo Europeu e de todas as nossas  excrescências políticas, sejam elas os congressos, os radicais ou outros.
Acendi um cigarro sob o olhar aprovador de Laura e um leve arquear de sobrancelhas do louro. Piter continuou o discurso com os olhos pequeninos cravados no tecto, num gesto teatral. Percebia-se  que ensaiado mil vezes.
-       Já não se trata de recuperar a nação, a alma, a dignidade. Trata-se de  fazer outro país.



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