IX
Pegou-me
pelo braço e pediu-me que a acompanhasse. Chamava-se Laura e queria
falar comigo, coisa que eu já tinha percebido. A ideia era andarmos até ao carro que estava
estacionado no lado oposto ao da estação.
Achei melhor ficar calado, porque nada tinha para dizer. Os anos de inacção e rotina depressiva tiraram-me a capacidade de reagir. Não sabia a língua, não sabia a
inflexão certa da voz. Chegámos ao carro, afinal já fora do parque de estacionamento da estação.
Entrámos para o japonês, ou
coreano, não me recordo, preto
e bem usado, e as explicações
começaram:
- Saber o seu número foi simples. Temos um amigo no GASO de
Setraga. Agora vamos conhecer uma
pessoas, ‘tá bem?
Arrancou suavemente como uma amiga que vem buscar um amigo. Resumindo, Laura e uns amigos tinham organizado uma base de dados sobre pessoas que pudessem fazer qualquer coisa de diferente. Tudo muito simples, muito natural. Excepto saberem que eu estava num comboio em direcção a Marília:
-Falámos hoje de manhã com
a sua mulher.
Também
sabiam o número dela através dos
registos do GASO. Muita coisa sabiam estes amigos. Ela guiava concentrada mas não na condução. Dir-se-ia que
me observava através da orelha direita, pequenina e bem desenhada, deixada livre pelo cabelo apanhado. Um cabelo preto mortal, a pele bem tratada, lábios grossos, dedos
finos e longos. Não
sei por que bufido do meu cérebro, lembrei-me que fosse médica.
-
Fui anestesista. Há muito tempo.
A viagem continuou. Passámos Kara, com os seus prédios miseráveis de janelas e varandas pequeninas, ruas largas, e agora inúteis, e passeios esburacados. Reparei nas pessoas que se equilibravam nas bermas e lembro-me de ter pensado como talvez pouco tivessse mudado. Antes da Grande Crise conhecera terras assim, baldeadas à ilharga das grande cidades, onde não parecia haver tempo para mais nada a não ser trabalhar comer e dormir. Era como se agora fosse o mesmo mas em versão emagrecida.
A estrada ficou rural de repente e o trânsito era insignificante. Resolvi que era tempo.
- Vamos lá ver. O que é que querem
de mim?
Explicou-me
que não explicava. O grupo debatia
em conjunto. Não tinham a certeza se eu aceitava o convite. Ainda
faltava um bocado, por isso tentei recuperar informação que me tivesse
escapado. Debate? A política
estava reduzida às reuniões pomposas
dos congressos e às ameaças da RENA e do NOSSO. O país estava estrangulado,
semi-deserto e as pessoas queriam apenas sobreviver. Talvez fosse mais um grupo
de lunáticos enrodilhados em discussões geopolíticas e doutrinárias. O que eu
não percebia era o que raio poderiam querer de mim. Sim, já tinha sido um bocadinho de tudo – escritor (de
artigos), jornalista, blogger – mas agora era um técnico de educação a meio tempo, desatento
profissional, sem porto de abrigo
e sem norte. E velho.
- Cinquenta anos não é velho.
Ela
disse isto com o entusiasmo do homem da bilheteira do estádio a vender um jogo das reservas. Abrandou
junto do portão de uma quinta, seguiu por uma vereda e estacionou no pátio de
uma casa de campo com muito bom ar. Branca, com heras verdes e umas escadinhas
que davam acesso à porta , garned e castanha, onde estavam à minha espera dois homens. Também bem
vestidos como mordomos, cabelo curto, um já calvo e entroncado, o outro
loirito e magro, ou talvez só alto. Agradeceram a minha vinda,
cumprimentaram-me com um aperto
de mão amigável e entrámos para um pequeno corredor. Daí fomos para uma grande
sala cheia de livros, com uma lareira e sofás luxuosos. O calvo entroncado chamava-se Piter, o louro
respondia pelo nome de António. Sentámo-nos todos, eu
num individual, os dois homens num
maior. Laura ficou de
pé, atrás de mim, e passou-me um cinzeiro, o que lhe ficou muito bem. O entroncado começou:
-
Comos sabe, estamos num
impasse.
Respondi
que talvez. Não ligou.
-
O país já não existe.
Morreu. Isto tem de ser percebido não importa a propaganda da CADE, do Governo Europeu
e de todas as nossas excrescências
políticas, sejam elas os congressos, os radicais ou outros.
Acendi
um cigarro sob o olhar aprovador de Laura e um leve arquear de sobrancelhas do
louro. Piter continuou o discurso com os olhos pequeninos cravados no tecto, num gesto
teatral. Percebia-se que ensaiado
mil vezes.
-
Já não se trata de
recuperar a nação, a alma, a dignidade. Trata-se de fazer outro país.
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