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Nessa
altura tive a certeza de estar
numa casa de malucos. Arrependi-me
de ter vindo e concentrei a minha atenção em sair dali
o mais depressa possível. O problema é que estava sem carro algures nos arredores dos arredores.
Enquanto o
porta-voz e
o louro se levantaram para buscar um documento que eu devia ver, fiz-me
de ocupado a aparar a cinza do
cigarro para o cinzeiro. Quando levantei os olhos, o louro estava à minha
frente e entregou-me o papel. Começava com a mesma arenga que Piter tinha
feito, mas depois arregalei os olhos. Ainda o tenho na memória, mais letra, menos expressão:
“
Fazer um país é, portanto, uma
obrigação. Vivemos isolados do
resto da Europa e, por infecção , do resto do mundo. Este isolamento não é físico nem comunicacional:
os estrangeiros podem chegar, ninguém nos impede de interagir electronicamente
com quem quisermos. Acontece que
não é necessário: não contamos para nada, nada temos para oferecer,
nada podemos comprar.”
Fiz
uma pausa e reparei que me tinham deixado sozinho Os três despareceram para outra parte daquela gaiola de doidos.. Continuei a ler.
“ Os antigos modelos estão esgotados. Não vivemos sob o
capitalismo porque não produzimos riqueza, não podemos ser socialistas porque nada existe para
distribuir com justiça. A pequena oligarquia é administrativa e vive do
dinheiro da CADE”.
O
resto do documento era no mesmo tom e acabava prometendo uma solução.
Deixara-me levar. A solução,
afinal, era uma promessa. Iguais a muitos lunáticos. Laura, outra vez na sala,
como uma pantera cuidadosa, sussurrou nas minhas costas, adivinhando-me sem dificuldade os pensamentos.
- Roma e Pavia não se fizeram num dia.
Apesar
da humidade, fomos os quatro para um pequeno terraço nas traseiras da casa. O
louro trouxe cafés,
autênticos, e umas bolachas de
importação. Uma reunião magna estava a ser preparada em Marília. Nessa altura seria revelada a solução.Lérias.
Enquanto
parlapatavam, analisei o grupo. Havia qualquer coisa que não batia certa. Nunca
tinha ouvido falar deles. Podiam ser, de facto, uns fantasistas bem
intencionados, mas, os métodos, e
a forma como me encontraram revelava isso, eram eficazes. Explicaram o
que queriam de mim. O louro falou, sem convicção, como se passasse uma
informação trivial. Precisavam de
pessoas que não estivessem comprometidas com o regime que ruiu nem com a CADE. Precisavam de pessoas alheadas e
sem nada a perder: se as conseguissem convencer, convenceriam também os abonados
enterrados em dívidas e compromissos. Eu não tinha ninguém a cargo, sabia pensar e escrever, e vinha a caminho de Marília. Perguntei como sabiam tanto. Responderam-me que não se pode mudar o que não se conhece.
Virei-me para Piter, que subentendi ser o líder ( explicou-me que não tinham
líderes, eram transversais ou outra osgada do género) e perguntei-lhe como se faz um país.
-
Não faz. Ninguém faz um país sentado a uma secretária. Mesmo os que o
tentaram, recorde o Congresso de Viena, sob a direcção do grande Metternich,
acabaram por ver os seus esforços desperdiçados pouco tempo depois.
Não
me apetecia jogar.Insistiu.
-
Compreenda. Não se trata
de inventar um país. Queremos dar uma forma diferente ao conceito.
Continuei a leste. Quis manter-me impávido, mas
franzi os olhos num sinal infantil de socorro por mais detalhes. Piter declarou que
teríamos ocasião para desenvolver o assunto na tal reunião que haveria de ter
lugar em breve.
Nunca
cheguei a participar na tal reunião e ainda hoje a imagino. O que fiquei a
saber posteriormente não me deu
uma perspectiva ampla, mas, como contarei mais tarde, deu-me o suficiente. Em todas
as alturas de definição da vida das gentes existe a tentação voltar para trás.
Este retorno só na aparência é benigno na sua ilusão de querer recomeçar. Não é
um começo, é uma destruição.
O
início do fim do começo
Levaram-me
à estação, os três, sem mais
discursos, e avisaram que me contactariam em breve. Cheguei a Marília no
comboio do final da tarde. Não tinha a carta TPM ( transportes públicos
modulares) , por isso fui a pé até à parça que sabia ter pensões baratas.
Alojei-me no Hostel Vitória , estendi-me na cama e adormeci. Já passava das
nove quando fui comer uma bifana
engolida com uma cerveja pelo
preço de um jantar nos velhos tempos. Não me apeteceu telefonar aos meus contactos da rede, estava enfartado de
discussões, política e estética conspirativa.
Nessa
noite, enquanto jantava,
angustiado, estava a ser preparado – do outro lado da cidade- o que ficou conhecido como a Castanhada. Numa
área residencial de qualidade ( ARQA), onde residiam muitos funcionários
superiores da CADE e alguns mordomos,
instalou-se um obscuro departamento, a Comissão de Normalização Identitária. Esta catacumba
burocrática, que dependia do mais
mediático Gabinete de Relações Exteriores, responsável pelas autorizações de
saída do país, ocupava uma moradia luxuosa e tinha sempre dois homens da DINATE
ao portão.
Tanto
quanto se soube depois, um velho vendedor de castanhas extraviou-se e foi para
a zona com o museu ambulante
- o fogareiro instalado num
carrinho de mão. Talvez o homem
tenha pensado que ao final da tarde, alguns dos abastados habitantes do bairro,
ao chegarem a casa, quisessem
comprar um cartucho de castanhas
para aperitivo ou sobremesa. Tanto quanto se soube depois, o homem tear sido espancado, ou
talvez
só empurrado, ou apenas insultado, pelso dois seguranças do edifício da CADE. Por coincidência,
um activista da RENA tinha sido convocado ao edifício para regularizar um assunto q e assistiu a tudo. Num ápice, estvavam à porta
da bisonha Comissão dezenas de
membros da RENA. Espancaram os seguranças, forçaram aentrada na casa, destruiram o qu e puderam a desfraldaram uma
bandeira da resistência na varanda do gabinte principal. Os homens da DINATE , quando chegaram, ficaram
surpreendidos porque um
extraordinário ajuntamento , a
zona ficava fora de mão e era residencial, como já disse, organizara-se na rua defronte da moradia ocupada. O
que era para ser uma simples operação de limpeza e detenção deum punhado de activistas
transformou-se numa enorme confusão. Disse-se mais tarde que o velho vendedor
de castanhs era muito querido num bairro popular contíguo à zona residencial, o
que explica a aliança entre gente comum e os activistas da RENA. A batalha
campal prosseguiu, com cada vez
mais
reforços da DINATE e cada vez mais manifestantes. Nunca se chegou a saber ao certo o que manifestavam e isso permitiu o crescimento da lenda (
ou da narrativa, como dizem os
escreventes de hoje)
O
que distinguiu a Castanhada de outras desordens não foi de certeza o resultado:
alguns feridos , dois ou três
severos, várias detenções e um gabinete arrasado. Nos dias seguintes, o incidente, ou os incidentes,
para ser mais excato, começaram a ser discutidos . Os sítios do
congressos e das univesidades e a tertúlia electrónicas foram albergando uam teoria. O que se
passara deu corpo, e finalmente nome, à situação do país. Já não se
tratava da guetização, mas de algo
mais profundo: o país estva
colonizado. Os radicais do NOSSO e da RENA pegaram logo na ideia e desenvolveram-na, indo desenterrar os textos dos teórico
spós-colnialistas do século passado,
como Said e Fanon. Não se sabe
ao certo quem deu o mote, mas a ideia infectou rapidamente.
Tudo
isto foi-me contado uns dias depois. Fiquei na pensão, adoentado. Uma gripe ou um distúrbio
psicossomático, como dizem os psiquiatras, causado pela saída de casa, de Setraga e do GASO, pela
reunião em Kara, pela angústia geral que me assolava. Bebi chá e torradas nos
cafés da praça Alegro e passei as
tardes a dormitar. Na manhã de 27 acordei com o telemóvel. Era Laura e estava à
minha espera para almoçar no Zazou. Sim, já tinha ouvido falar, um dos poucos
restaurantes charmosos e
informais que sobreviveram, frequentado
pelos chefes das redacções, filhos de mordomos, turistas e beau monde em geral.
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