Kara,
a última estação decente antes de Marília, era uma zona suburbana, ainda ruralizada. A bem dizer, de novo
ruralizada. Nos anos da Grande Crise ( agora já nem se podia falar de crise, porque não havia horizonte de mudança), alguns especialistas falaram do regresso à
terra. Lembro-me de sorrir, como é
de bom tom diante da falsa
ingenuidade. A terra de que
falavam seria a da produção agrícola, uma terra desconhecida no país, onde a agricultura foi
quase sempre de subsistência. ou de negócios com subsídios europeus). A pouca que não o era apenas suportou a
concorrência dos grandes espaços deste mundo graças
a subsídios, vonatde metálica e ajudas. O regresso à terra era, no fundo, o regresso à pobreza.
Parecia um enredo de um fime simplório
de espionagem . Usei o pouco saldo
que tinha no aparelho para enviar
um email para os meus dois
contactos. Combinei com ambos às seis
da tarde, num café que conhecia bem, perto de uma praça enxameada de
pensões baratas mesmo no centro de Marília. Teria tempo para
me instalar e pensar. Depois decidi enviar outra mensagem a anular a primeira.
Queria ficar livre para
decidir sobre o telefonema e o
provável encontro.
O
resto da viagem , com paragens intermináveis, passei-o ansioso e aparvalhado
com chamada do homem desconhecido. Não com a chamada em si , mas com o facto de o desconhecido saber o meu número e o meu nome. Para resolver o assunto talvez valesse a pena encontrar-me com um tipo que nem sabia se era gordo ou
magro, baixo ou alto, mas se
saísse em Kara teria depois de comprar novo bilhete para o centro de Marília. A
curiosidade era um mau negócio.
Nem
dei pela paisagem verde-encardida, os montes semeados de pequenas casas, os
apeadeiros baços e descuidados.
Num deles, acordei da inquietação porque senti o cheiro de castanhas assadas quando
estiquei as pernas à porta da carruagem.
O homem estava na outra ponta da plataforma e só tinha um cliente, uma
mulher bem arranjada com duas crianças . Soube-me
bem aquele pedaço de familiariedade, ou de memória desarranjada. Depois da mulher e das crianças se terem afastado, vi o homem sozinho
durante o resto do tempo em que o
comboio esteve parado. Mais ninguém lhe comprou castanhas e o vendedor
devia ser estúpido ou desconhecia o cálculo de probabilidades. Quando penso
estes pensamentos de plástico
sinto-me idiota, claro. Esta raiva contra o homem das castanhas, caríssimas e
um luxo dispensável, era uma raiva
importada de um país que já não
existia. Poucos podiam dar-se ao luxo de ter luxos.
A
última estação antes de Kara era um apeadeiro em Rio Seco, uma terriola
agrícola e um antigo
dormitório.do tempo em que havia trabalho em Marília. Tinha de decidir.
Agora sei-o, na altura enganei-me
com dúvidas. Se tinha largado tudo era porque não estava disposto a ter uma
vida, ou o que restava dela, normal. Nenhum sentimento romântico ou de entrega a uma causa
( até porque a desconhecia),
como já expliquei e é justo que saibam. Também não se tratava, preciso
de justificar, do cultuar da posição do anti-herói desprendido. Como muita gente, apenas pretendia desistir de
três anos de prisão moral.
Ainda
guardo um pedaço de um texto que escrevi, no Natal de 2016, para um pequeno jornal irregular de Setraga:
“
(…) Viver com que se tem, se se
tiver pouco, é viver pouco. Viver
com o que se se tem, se não se
tiver nada, não é viver. A propaganda diz que pouco é melhor do que nada, mas
não é esse o problema.
Saber
que nunca teremos mais do que pouco, ou nada, obriga-nos a demitir o tempo. E o
tempo, já nem digo o futuro, é o que nos devia salvar do pouco, ou do nada, que
temos. Esse tempo não existe”.
Como
o meu amigo professor me avisara, este género de lamentação era falinha mansa. O problema
é que os radicais, da RENA ( Resistência Nacional) ou do NOSSO ( Novo
Socialismo), ofereciam apenas caos. Agarrados aos velhos sonhos, marxistas e
leninistas, reciclados nos Zizeks
e Badious, diziam às pessoas para
erguer barricadas. Ninguém lhes ligava, o que quase me fazia ficar do lado deles. Depressa me passava a
empatia, porque os radicais
persistiam em desprezar as dificuldades das pessoas. Os abonados não ardiam no
fogo revolucionário: tinham filhos, dívidas e alguns bens salvos da ressaca da Grande Crise. Na mistificação comunista, as pessoas, os
explorados, são meios e não fins. A verdade é que numa coisa os radicais
estavam certos: o tempo, o tal tempo,
esgotava-se.
Sentia-se,
em pequenos detalhes, uma espécie
de desespero diferente. No jornal que li na estação, bem como no que fui vendo nos minutos
esquecidos dos telejornais, apareciam gotas de protesto. Em Vora, a apenas cinquenta quilómetros de Marília, um grupo de pessoas , cerca de
quarenta, sem organização política conhecida , destruiu um gabinete do
GASO. O
que me chamou a atenção , como a muita gente,
suponho, foi o facto de a destruição ter sido metódica e ordenada. Não houve
gritos, palavras de ordem ou balbúrdia. As pessoas entraram no edifício, onde também funcionava uma pequena
antena de saúde, em silêncio. Manietaram os dois seguranças regaram as salas
com um qualquer liquído inflamável e pegaram fogo ao circo. Depois abandonaram o
local como se tivessem ido tratar de assuntos administrativos, em boa ordem e
calma. Se tivessem ficado tinham sido presos. Não houve nenhuma mensagem encaixilhada num
manifesto de protesto nem se podia tirar grandes conclusões do alvo: quatro ou
cinco gabinetes médicos, a farmácia
necessária, uns tantos computadores e algum material médico.
Durante
os anos que antederam a vinda da CADE,
o estupor vingou e a raiva era
mecânica e com hora marcada, mas nos últimos meses alguma coisa estava a
mudar. Talvez a chegada da CADE e a aniquilação das instituições tivesse
despertado um reflexo, como o esticar das patas dos elefante de morrer. Coisa, coisas, as minhas palavras eram tão vagas e coisificadas como o meu pensamento. O comboio parou
em Kara
às 11.31h. É difícil esquecer, porque fui verificando a hora no telemovel.
Umas dez vezes.
Era
ridículo. Não vivíamos sob o
terror, mas sentia-me conspirativo. Suponho que é da natureza humana. Até o
mais flácido dos porteiros se imagina conspirativo quando divulga um pequeno segredo dos poderosos. Decidi sair do comboio e esperar pelo meu interlocutor misterioso. A estação tinha o movimento normal,
nestes dias sombrios e
excepcionais, de um apeadeiro suburbano àquela hora. Alguns trabalhadores que interromperam,
não se sabe porquê, o pouco
trabalho que faziam em Marília, um ou outro casal de velhotes. em marcha fúnebre. Ninguém
parecia esperar-me e, claro, quem esperava era eu.
Andei
uns metros, fingi consultar os
horários no écran sujo do
monitor interactivo, pousei a mochila e acendi um cigarro. Nada. Fumei o cigarro já
num estado de descontracção. O ar
estava molhado e o comboio partiu.
A ligação para Marília era só às duas da tarde, tinha muito tempo para
pensar. Como dizia o meu filho,
era de borla. Pus-me a andar pela plataforma, contornei o edifício principal da
estação e vi-me num terreiro cheio de lixo. Ao fundo, uma casinhota , um cão
preso a um abrigo e um carro velho e desconjuntado. O terreiro abria para uma ravina ampla, talvez de uns cem
metros de profundidade e podia ver
a planície a seguir. Casas, hortas e oliveiras esparsas do meu lado
esquerdo, malha urbana e mal amanhada do meu lado direito, atravessada por uma
estrada desabitada.
Quem escolheria
um ermo destes para conspirar? É
certo que também podia ver restos de pequenas indústrias – barracões, edifícios
que pareciam antigas oficinas, armazéns fechados, o que era irrelevante . Fosse como fosse, a acção estava nas cidades e eu não era
um oposicionista na clandestinidade
do antigamente. Não tinha a coragem nem o motivo.
Voltei para trás , na direcção da
estação, à procura do bar para um café, caro e essencial, quando me cruzei com uma mulher bem vestida, alta
e com o cabelo apanhado que lhe dava um ar ainda mais altivo. Nem dois metros depois ouvi chamar:
-
Gil? Gil Gose?
Virei-me
e a minha expressão deve ter acelerado as explicações:
-
Fomos nós que o
contactámos.
já aprovei o seu comentário, João, mas ele não aparece...vou ver o que se passa
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