sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

                                                                          VIII





Kara, a última estação decente antes de Marília, era uma  zona suburbana, ainda ruralizada. A bem dizer, de novo ruralizada. Nos anos da Grande Crise ( agora já nem se podia falar de crise, porque  não havia horizonte de mudança), alguns especialistas falaram do regresso à terra.  Lembro-me de sorrir, como é de bom tom diante da falsa  ingenuidade.  A terra  de que falavam seria a da produção agrícola, uma terra desconhecida no país, onde  a agricultura foi  quase sempre de subsistência. ou de negócios com subsídios europeus). A pouca que não o era apenas suportou a concorrência dos grandes espaços deste mundo graças a subsídios, vonatde metálica  e ajudas. O regresso à terra era, no fundo, o regresso à pobreza.




Parecia um enredo de um fime simplório de espionagem .  Usei o pouco saldo que tinha no aparelho para  enviar um  email para os meus dois contactos. Combinei com ambos às seis  da tarde, num café que conhecia bem, perto de uma praça enxameada de pensões  baratas mesmo no centro de Marília. Teria tempo para me instalar e pensar. Depois decidi enviar outra mensagem a anular a primeira. Queria  ficar livre para decidir  sobre o telefonema e o provável encontro.
O resto da viagem , com paragens intermináveis, passei-o ansioso e aparvalhado com chamada do homem desconhecido. Não com  a chamada em si , mas com o facto de o desconhecido  saber o meu número e o meu  nome.  Para resolver o assunto  talvez valesse a pena   encontrar-me com um tipo que nem sabia se era gordo ou magro, baixo ou alto, mas  se saísse em Kara teria depois de comprar novo bilhete para o centro de Marília. A curiosidade era  um mau negócio.




Nem dei pela paisagem verde-encardida, os montes semeados de pequenas casas, os apeadeiros  baços e descuidados. Num deles, acordei da inquietação porque senti o cheiro de castanhas assadas quando estiquei as pernas à porta da carruagem.  O homem estava na outra ponta da plataforma e só tinha um cliente, uma mulher bem arranjada com duas crianças . Soube-me bem aquele pedaço de familiariedade, ou de memória desarranjada. Depois  da mulher e das crianças  se terem afastado, vi o homem sozinho durante  o resto do tempo em que o comboio esteve parado.  Mais ninguém  lhe comprou castanhas e o vendedor devia ser estúpido ou desconhecia o cálculo de probabilidades. Quando penso estes pensamentos de plástico sinto-me idiota, claro. Esta raiva contra o homem das castanhas, caríssimas e um luxo dispensável, era  uma raiva importada de um país  que já não existia. Poucos podiam dar-se ao luxo de ter luxos.







A última estação antes de Kara era um apeadeiro em  Rio Seco, uma terriola  agrícola e um antigo  dormitório.do tempo em que havia trabalho em Marília. Tinha de decidir. Agora sei-o, na altura  enganei-me com dúvidas. Se tinha largado tudo era porque não estava disposto a ter uma vida, ou o que restava dela, normal. Nenhum sentimento romântico  ou de  entrega a uma causa  ( até porque a desconhecia),  como já expliquei e é justo que saibam. Também não se tratava, preciso de justificar, do cultuar da posição do anti-herói  desprendido. Como muita gente, apenas pretendia desistir de três anos de prisão moral.
 Ainda guardo um pedaço de um texto que escrevi, no Natal de 2016, para um pequeno jornal irregular  de Setraga:


“ (…)  Viver com que se tem, se se tiver pouco, é viver pouco.  Viver com o que se  se tem, se não se tiver nada, não é viver. A propaganda diz que pouco é melhor do que nada, mas não é esse o problema.
Saber que nunca teremos mais do que pouco, ou nada, obriga-nos a demitir o tempo. E o tempo, já nem digo o futuro, é o que nos devia salvar do pouco, ou do nada, que temos. Esse tempo não existe”.

 Como o meu amigo professor  me avisara, este género de lamentação era falinha mansa. O problema é que os radicais, da RENA ( Resistência Nacional) ou do NOSSO ( Novo Socialismo), ofereciam apenas caos. Agarrados aos velhos sonhos, marxistas e leninistas,  reciclados nos Zizeks e Badious, diziam às pessoas para  erguer barricadas. Ninguém lhes ligava, o que quase me fazia  ficar do lado deles.  Depressa me  passava  a empatia, porque  os radicais persistiam em desprezar as dificuldades das pessoas. Os abonados não ardiam no fogo revolucionário: tinham filhos, dívidas e alguns  bens salvos da ressaca da Grande Crise. Na  mistificação comunista, as pessoas, os explorados, são meios e não fins. A verdade é que numa coisa os radicais estavam certos: o tempo, o tal tempo,  esgotava-se.





Sentia-se, em pequenos detalhes, uma espécie  de desespero diferente. No jornal que  li na estação, bem como no que fui vendo nos minutos esquecidos dos telejornais, apareciam  gotas de  protesto. Em Vora, a apenas cinquenta  quilómetros de Marília,  um grupo de pessoas , cerca de quarenta,  sem organização política conhecida ,  destruiu um gabinete do GASO. O que  me chamou  a atenção , como a muita gente, suponho, foi o facto de a destruição ter sido metódica e ordenada. Não houve gritos, palavras de ordem ou balbúrdia. As pessoas  entraram no edifício, onde também funcionava uma pequena antena de saúde, em silêncio. Manietaram os dois seguranças regaram as salas com um qualquer liquído inflamável e pegaram fogo ao circo. Depois abandonaram o local como se tivessem ido tratar de assuntos administrativos, em boa ordem e calma. Se tivessem ficado tinham sido presos. Não houve  nenhuma mensagem encaixilhada num manifesto de protesto nem se podia tirar grandes conclusões do alvo: quatro ou cinco gabinetes médicos, a farmácia  necessária, uns tantos computadores e algum material médico.
 Durante os anos que antederam a vinda da CADE,  o estupor vingou e a raiva era  mecânica e com hora marcada, mas nos últimos meses alguma coisa estava a mudar. Talvez a chegada da CADE e a aniquilação das instituições tivesse despertado um reflexo, como o esticar das patas dos elefante de morrer. Coisa, coisas, as minhas palavras  eram tão vagas e coisificadas  como o meu pensamento.  O comboio parou em Kara às 11.31h. É difícil esquecer, porque fui verificando  a hora no telemovel.  Umas dez vezes.
Era ridículo. Não vivíamos  sob o terror, mas sentia-me conspirativo. Suponho que é da natureza humana. Até o mais flácido dos porteiros se imagina conspirativo quando  divulga um pequeno segredo dos poderosos. Decidi  sair do comboio e esperar pelo  meu interlocutor misterioso.  A estação tinha o movimento normal, nestes dias sombrios e  excepcionais, de um apeadeiro suburbano àquela hora.  Alguns trabalhadores que interromperam, não se sabe porquê,  o pouco trabalho que faziam  em Marília,  um ou outro casal  de velhotes. em marcha fúnebre. Ninguém parecia esperar-me e, claro, quem esperava era eu.




Andei uns metros, fingi consultar  os horários no écran sujo  do monitor  interactivo, pousei  a mochila e acendi  um cigarro. Nada. Fumei o cigarro já num estado  de descontracção. O ar estava molhado e o comboio partiu.  A ligação para Marília era só às duas da tarde, tinha muito tempo para pensar. Como dizia o  meu filho, era de borla. Pus-me a andar pela plataforma, contornei o edifício principal da estação e vi-me num terreiro cheio de lixo. Ao fundo, uma casinhota , um cão preso a um abrigo e um carro velho e desconjuntado.  O terreiro abria para uma ravina ampla, talvez de uns cem metros de profundidade e podia ver  a planície a seguir. Casas, hortas e oliveiras esparsas do meu lado esquerdo, malha urbana e mal amanhada do meu lado direito, atravessada por uma estrada desabitada. 




Quem escolheria um ermo destes  para conspirar? É certo que também podia ver restos de pequenas indústrias – barracões, edifícios que pareciam antigas oficinas, armazéns fechados, o que era irrelevante . Fosse como fosse,  a acção estava nas cidades e eu não era um oposicionista na clandestinidade   do antigamente. Não tinha a coragem nem o motivo.
 Voltei para trás , na direcção da estação, à procura do bar para um café, caro e  essencial, quando me cruzei com uma mulher bem vestida, alta e com o cabelo apanhado que lhe dava um ar ainda mais altivo. Nem dois  metros depois ouvi chamar:
-       Gil? Gil Gose?
Virei-me e a minha expressão deve ter acelerado as explicações:
-       Fomos nós que o contactámos.

1 comentário:

  1. já aprovei o seu comentário, João, mas ele não aparece...vou ver o que se passa

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