E
era tudo o que me sobrava depois de 50 anos de vida. Bem, isso e algumas
rugas, um langor infeccioso e um desinteresse galopante. Se me tivessem dito, há dez anos, que
ia fazer isto, acreditava. Toda a gente
leva à pendura esta fantasia. O que me teria feito rir era a causa.
Tinha
um destino: Marília, ainda a
capital do país. Ao longo dos
últimos meses também fui participando em algumas discussões em rede, evitando
os alucinados que queriam fazer revoluções e reunir falanges, serpenteando pelas alternativas de exércitos de um
homem só. Esta gente, que
funcionava, como disse, em circuito fechado, aborrecia-me. Os mordomos e a CADE ignoravam os
rumores e deixavam a pressão
aliviar na rede.
Levava contactos de duas pessoas,
nem sabia se homens ou mulheres ou mulheres, que pareceram menos fantasiosas.
Não
era estranho, numa altura daquela, não ter amigos reais com quem pudesse ir
ter. Os laços foram-se perdendo e
não era situação a única
responsável. Nos últimos anos, deixei de aparecer - não tinha
paciência para suportar lamentos
nem alegria para conversar. Bem, talvez a situação tivesse acelerado o meu isolamento, mas não o
causou. Muitas pessoas ganharam
força com as dificuldades, mas a minha formação estóica derrotava-me.
Não esperar nada do dia de amanhã era fácil, mas apreciar e despedir-me do dia que passou, era impossível. A
ditadura do presente, o motor estóico, parecia-me insuportável. Quando mais
precisava do estoicismo, não fui capaz.
Fechei a porta do apartamento e fui a pé até à
estação. Havia um primeiro comboio
da manhã para Marília e tinha tempo. Desci as ruas vendo com olhos diferentes as mesmas
casas. Restaurantes e cafés entaipados, várias lojas Delícia: todas iguais,
onde se vendia desde roupa usada a
pacotes de leite. De vez em quando passavam bons carros, daqueles que se sabia
levar mordomos ou gente a eles
associada. Os mendigos , fossem cegos, paralíticos ou simplesmente
esfomeados, não podiam pedir na rua. A CADE organizou as ZOSRA: zonas
de solidariedade recomendada. Eram geralmente recantos de jardins públicos,
becos ou estaleiros abandonados . Os mendigos eram etiquetados e recebiam um
cartão de beneficiário de uma determinada ZOSRA. Se saíssem da circunscrição para ir pedir nas zonas livres, eram levados para os
centros de readaptação funcional ( CEREAL) do GASO local. Passavam a ter de
trabalhar sem salário em troca de
duas refeições diárias e um telhado. Os mendigos não gostavam dos
CEREAL por vários motivos, sendo o principal o tipo de trabalho: em regra,
carregar e descarregar camiões de
mercadorias que o GASO alugava
para as tarefas necessárias ( abastecimentos de escolas, hospitais etc)
Setraga era agora uma cidade quieta.
Fazia-me lembrar a que só
conhecera dos livros, das
descrições e das fotografias de
meados do século passado. Antes da
Grande Crise, há apenas meia dúzia de anos, estas mesmas ruas,
estas mesmíssimas ruas, passeios e praças, barulhentas e opressivas,
faziam-me suspirar pelo sonho de
uma casa na serra. Não só sonhos desses pareciam agora delírios acrisolados , como dava um
polegar, ou ambos, para voltar a ouvir e ver o clangor opressivo.
Cheguei
à estação como um soldado desmobilizado, com a mochila às costas e a cabeça
pesada. Comprei o bilhete e um jornal. Escolhi o Esperança, um diário do lóbi da CADE. Sentei-me num banco e folhei-o. Gostava de ver os nomes dos colunistas.
Apreciar as letras e o asterisco que, repetido em baixo, indicava a profissão do autor. Aprende-se bastante
com a memória dos asteriscos. Muitos eram antigos patriotas que afinal nos
convenciam, com números e fontes seguras, de que não havia outro caminho senão
prosperar a longo prazo sob a CADE.
Um
artigo de um emigrado, agora director numa grande empresa chinesa, explicava
que o país tinha de ser paciente. Achei
infantil o cliché
China-paciência, mas a invectiva
fez-me pensar. Era aceitável
ser paciente com um ordenado de milhares de dólares e motorista. Por
cá, a diferença entre a paciência e a resignação
era fininha. A amnésia geral servia como uma luva
aos antigos patriotas. As pessoas tinham deixado de discutir culpa e culpados, o que nem era necessariamente
mau, por isso muitos antigos patriotas puderam reciclar o discurso.
Os
meus companheiros de viagem reuniram-se aos poucos na plataforma. Não era
necessário ser muito observador para distinguir dois grupos. O dos abonados,
que incluía duas mulheres, um
casal e três homens, exibiam roupas de marca já muito
usadas, antiquadas mesmo, malas e mochilas, ar de quem foi deslocalizado. O
GASO mudava as pessoas de uma cidade para
a outra, às vezes sem mais antecedência do que dois ou três
dias. O lema era “ Onde está o
trabalho, estão as pessoas”. Uma
amiga de Rita teve um bebé e recusou o abono do GASO para ir trabalhar no norte
do país, a quase duzentos quilómetros da sua casa de Setraga. O marido
deixou-a, os amigos
reprovaram-lhe não só a
recusa, que acharam obscena, como a decisão de ter tido a criança. Hoje vive de esmolas.
No
grupo dos mordomos bispei um casal
e dois homens. Bem vestidos, ela com uma mala de mão elegante, eles
com pequenos sacos de viagem a
tiracolo, relógios imponentes nos
pulsos . Levavam jornais e falavam ao telemóvel. Lembro-me vagamente de que
havia mais dois ou três homens inclassificáveis, talvez tipos da DINATE à
civil, talvez apenas inclassificáveis.
Como
era habitual, o comboio ia quase vazio. As pessoas não tinham grandes motivos para se deslocarem de um sítio
para o outro, porque, apesar do slogan
do GASO, mesmo o trabalho
para os abonados era pouco e os bilhetes de comboios eram mais caros do
que os das camionetas. Pousei a mochila , recostei-me e gozei a
privacidade. O comboio arrancou e,
ao fim de alguns quilómetros, já só via mato, floresta e pequenas povoações.
Não
tinham decorrido mais de vinte
minutos quando o toque do
telemóvel me espantou. Não recebia chamadas a não ser dos meus filhos, e
poucas, ou da Rita, o que naquele momento
era improvável. Uma voz de
homem chamou-me pelo nome e disse que me esperava na estação de Kara.
E desligou.
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