O
Congresso Nacional não era uma
organização de hierarquia clássica. Em várias cidades, ligadas pela pouca tecnologia utilizada ( a queda do poder de compra e a emigração de gerações mais novas
reduziu o número de utilizadores)
e por alguns entusiastas em carne e osso, formaram-se pequenos
círculos inspirados pelos nomes mais sonantes de Marília . Durio, a segunda cidade do país, desapareceu politicamente do mapa, se é que alguma vez lá
esteve, porque os seus melhores quadros
caíram em desgraça - viviam
em quintarolas minhotas a fazer vinho ou emigraram como executivos bem pagos.
Em
Outubro de 2017 decidi que não podia mais. Os meus filhos tinham partido há
quase um ano, ainda a tempo de evitar aproibição de emigrar . O
João, o mais novo, para o Canadá,
o Miguel
para Inglaterra. Eu e a minha mulher já só nos tolerávamos e a linguagem
resumia-se à troca de informações sobre a vida dos miúdos. Não senti nenhum
chamamento, nenhuma inclinação. A verdade foi mais simples: não podia sair e já não conseguia ficar
.
Resolvi
deixar tudo no dia 25 de Outubro
de 2017. Vivíamos num apartamento mais pequeno, arrendado. Uma sala, um quarto,
a casa de banho e uma cozinha. O
anterior, grande e bom, foi
entregue ao banco quando o segundo dos miúdos foi embora, em Julho de 2016,
mais coisa menos coisa. O costume adoptado por casais na nossa situação foi o de partilhar apartamentos.
Outros alugavam quartos em casas
de velhos sozinhos. Isto era mais do que uma opção, era um dever: não havia
a possibilidade de sustentar a hipoteca de uma casa sem salários normais. Preferimos manter a
privacidade, cortando noutras
coisas. Livros e filmes corriam de
mão em mão, os qu epodiam descarregavam o material da internet. Muitas
vezes passava na minha antiga rua e olhava para o prédio e para a vida que se foi. Em Setraga, como nas cidades de dimensão razoável, as boas casas não ficaram vazias muito
tempo. O pessoal técnico da CADE e os filhos e amigos dos mordomos
treparam por elas como
esquilos.
Discuti,
pela centésima vez, os termos da
minha opção com a Rita, que pouco falou. Se tivesse falado seria para repetir o habitual: Melhores tempos virão, tens de ter
paciência, não podes ser assim. O meu amigo acusava-me de inacção, a minha mulher apontava-me um feitio
inconformado. Talvez não inconformado, talvez fraco e infantil. Talvez ambos
tivessem razão, talvez eu rosnasse em casa mas fosse dócil e alheado na rua.
Talvez nada.
A obsessão da Rita com as vidas dos miúdos, com o futuro
dos miudos e com o pouco trabalho que ainda tinha, preenchia-a. Nessa manhã,
enquanto arrumava a mochila, coisa
que nem em adolescente usei, senti-a na casa de banho.
Quando fui buscar a tesoura da barba,
cruzámo-nos e quase chocámos, ou
chocámos mesmo, não sei.
Quando não há distância crítica,
aquela que faz com que uma pessoa, se desvie de outra , já não somos pessoas.
Nem animais. Isto pode parecer um psicodrama, mas naquela altura era a minha vida , um bom pedaço da minha vida, que acabava sem clangor.
Tanto
se lhe dava se eu ficava ou se ia. Pela minha parte, só me preocupava com a hipótese de conseguir fazer
alguma coisa. Como não podia ir
ter com os miúdos e não aguentava mais
a simulação de trabalho que tinha nem o ar que respirava em Setraga,
sentia-me colado a ela. Assim
foi melhor, as separações só são
difíceis quando ainda há distância.
Ela
disse-me adeus quando saiu, eu respondi, rígido, enquanto revi papeladas avulsas em cima da mesa da
sala. Volto muitas vezes
a esta cena, uma manhã molhada e abafada, uma despedida sem um pingo de sangue.
Tento saber se o que nos aconteceu
foi causado pelo estado das coisas ou se também teria acontecido se as nossas
vidas se tivessem desenrolado como seria normal. Se tivéssemos as
nossas profissões, a nossa casa, os nossos filhos em nossa casa,
ou mais perto dela e as vidas deles entrelaçadas nas nossas. A única conclusão a que chego é que mesmo em épocas excepcionais nos dedicamos a análises vulgares.
Abandonar
Rita, Setraga e o meu trabalho,
foi abandonar algo que, por
alguma razão, apodreceu. Não me custava de forma especial, nem tinha sequer o
prazer suspeito de abandonar. O
país passara a conjugar o verbo com eficiência. Abandonava-se a cidade onde se
vivia, o próprio país ( antes da proibição da CADE)
, qualquer trabalho monótono e
disparatado. O sentimento de abandono assentou na comunidade. É
necessário recordar que os que ficaram foram os que não puderam sair.
Uns
dias antes, compareci na delegação
do GASO . Tinham-me colocado numa escola primária a dar apoio a crianças com dificuldades
de aprendizagem. Havia cada vez menos crianças, por isso havia cada vez menos
trabalho Trabalhava duas horas por
dia, sempre de tarde, e ganhava 400 euros. Limitava-me a ler com os
garotos, a rever a tabuada e a
fazer macaquices no computador. Ninguém
se importava se eu fazia bem o trabalho. Eu também não. Aquele era o
meu trabalho, se bem que eu já não soubesse qual era o meu trabalho. A situação
fez-me o que fez a muita gente: obrigo
a fazer o que fosse preciso. Aqueles garotos teriam um futuro igual ao meu, a trabalhar
para o GASO, talvez a dar aulas de
apoio aos futuros abonados.
Fui
ao gabinete do vice-director, um lambe-botas de apelido Vedia ( nunca cheguei a saber o primeiro nome),
que, nos bons tempos, foi director regional
da educação, nomeado pelo partido local, tendo sucedido a um aparelhista
semelhante, mas de outra filiação
partidária. Quando os partidos
deram de si, corria nas tertúlias políticas a ideia de que, pelo menos,
acabava o carreirismo. Engano puro. Na educação, por exemplo, continuaram a ser nomeados indvíduos
que julgavam que paideia era um
palavrão.
A
secretária não estava no seu posto e por isso bati logo à porta. Mandou-me
entrar. Sem me sentar, cumprimentei-o e disse-lhe que me ia embora.
- Não é
assim tão simples .
Olhei para ele e arrependi-me da minha estupidez. Tinha pensado nisso.
Devia ter ido embora sem dizer nada. Enquanto ele arengava sobre responsabilidade, compromisso com o futuro e outras
porcarias, revi a táctica
-
Tenho a declaração de
desobrigação pronta. Enviei-a por correio electrónico e quero saber onde deixo a versão em
papel. Não sou obrigado a ficar.
Foi
como se estivesse a falar da
metereologia. Não me ligou patavina e continuou a dizer que não, que não era
assim, que depois falaríamos. E sublinhou:
-
Sabe que perde o
subsídio de integração, não sabe? E que o perde por um perído nunca inferior a cinco anos? Ou seja,
ou vai roubar ou trabalhará de borla num qualquer CEREAL.
Os
CEREAL, os centros de readaptação funcional, eram agências da
CADE que distribuiam tarefas aos que que não tinham nenhuma. As pessoas eram
alojadas em antigas escolas, instalações de empresas desactivadas, enfim, o que
estivesse abandonado. Agradeci-lhe
a projecção, larguei o papel da demissão em cima da mesa e fui-me embora
Desde
que não me chateassem, estava-me nas tintas. O que ganhava impedia-me de viver
fora do sufoco da nova regência. No apartamento que ia deixar já não tinha os meus livros,
só não vendera uma vintena, dormia
acordado a ver televisão e
alimentava-me dos MONUCO (
Módulos de Nutrição Compensada) .
Os MONUCO, os moluscos, como lhes
chamavam, eram iguais em todo o lado.
Sete almoços e sete jantares, individuais, cada um com uma sopa de
pacote, um pedaço
de peixe ou carne, refrigerados, uma peça de fruta, uma embalagem de arroz ou
batatas ( às vezes grão ou feijão)
pré –cozinhada.
Fosse
como fosse, a ida ao GASO não tinha alterado nada e aquela manhã de Outubro
cumpriu a sua tarefa. Mochila às
costas com duas mudas de roupa, dois pacotes de bolachas, tesoura da barba, um sabonete, a
escova de dentes, uma toalha e um tubo de vitaminas. Numa bolsa
lateral enfiei duas folhas
de papel. Uma era um pedaço de uma mensagem que o meu filho mais velho, o
João, me tinha enviado há uns
meses e que eu não aceitava nem compreendia:
“ Claro que não volto. A mamã pensa que sim, mas não. Impossível. Tu
é que tens de dar apoio e trabalhar e viver a tua
vida
até que a situação se resolva. Não estás preso, só não podes sair do país. Aí
podes fazer o que quiseres, tens muito tempo livre e pensar não custa
dinheiro”.
Precisei de guardar estas palavras para o dia em
que as pudesse aceitar e
compreender. Como muitos da sua idade, o João dividia o país. Uma metade, a que
ele deixou para trás, feita pela
geração dos pais e dos avós, rançosa e culpada. A outra, que haveria de ser feita pela geração
dele, à distância, espalhada pela
Europa, Brasil, América, Angola, supensa e adiada.
Não o podia criticar nem
aconselhar, o que era mais grave. Uma vez perguntei-lhe como era isso de fazer
um país do outro lado do mar, do
outro lado da fronteira. Respondeu-me que
não sabia, mas que se os da
sua geração tivessem sucesso, podiam sempre regressar e se falhassem não
prejudicariam os que ficaram nem
as gerações seguintes. O despeito
estava a caminho de se tornar uma
religião monoteísta.
"O problema é que os radicais, da RENA ( Resistência Nacional) ou do NOSSO ( Novo Socialismo), ofereciam apenas caos. Agarrados aos velhos sonhos, marxistas e leninistas, reciclados nos Zizeks e Badious, diziam às pessoas para erguer barricadas. Ninguém lhes ligava, o que quase me fazia ficar do lado deles. Depressa me passava a empatia, porque os radicais persistiam em desprezar as dificuldades das pessoas."
ResponderEliminarA questão aqui é se é mesmo assim ou se é antes a melancolia quase extrema do narrador que tinge tudo o que toca?
João.