domingo, 20 de janeiro de 2013



                                                      II

Enquanto preparava o  discurso, o ministro tratava de ser admitido numa grande multinacional de consultadoria, arrumava os pertences ( a peluda, como dantes se dizia na tropa) e enviava a família, com antecedência, para um destino fresco. Muitas individualidades – para usar a classificação preferida dos media -  fizeram percursos semelhantes. A retórica  do estamos  todos no mesmo barco, repetida  todos os dias desde  o início da Grande Crise, escondeu sempre  a existência de um porto de abrigo a poucas  braçadas de distância. A esse refúgio aportaram muitos. Alguns aproveitando apenas a sorte e o talento que lhes fez acumular os recursos  necessários para escapar, mas também uma cáfila de aldrabões contumazes que trocaram as convicções por uma conta bancária. 
Recordo-me de um desses, espécie de rolha que  flutuava desde os tempos anteriores  ao descalabro, na televisão , a pedir paciência e confiança aos cidadãos. Rita, sentada no chão mas encostada onutra parte  do sofá, como se tivesse medo que eu lhe pegasse moléstia, resbunou a certa altura um "não vale  a pena". Disse-lhe que  não valeria  pela figura da televisão, mas talvez por nós.
    - Nós, queres dizer mesmo nós? Ainda menos.
Nesses tempos, que  parecem já tão distantes como a costa ao náufrago, não sabíamos o que estava para vir. Nem no país nem para o nós de que Rita  descria.
As outras forças policiais, exangues pelas greves sucessivas e por abandonos  constantes, já só garantiam a protecção de quem   ( ainda) lhes pagava. Alguns bancos, centros comerciais – agora reduzidos  a metade da oferta, edifícios e algumas  entidades públicas recebiam o serviço. 

A CADE desdobrou-se em gabinetes civis, equivalentes aos antigos ministérios e os tribunais  deixaram de ter trabalho: sem economia, com metade da população e poucos bens susceptíveis de disputa,  a lei adormeceu. Foram nomeados comissariados  - um Nacional e vários regionais com quadros  da antiga ordem administrativa , para trabalhar com os novos patrões, que se limitavam a executar.
Ao contrário do que muitos previam, o país não se dedicou  ao caos. As pessoas protestavam nas ruas, sim, mas sem  rasgo, quase como um dever. Nas cidades maiores,  os antigos inspiradores da violência constestatária de esquerda foram ultrapassados. Gangues de miúdos faziam as vezes dos outrora politizados e quando se envolviam com a pouca polícia, faziam-no de cara destapada.  A CADE assegurou  a todos os desempregados um rendimento mensal mínimo equivalente  a  metade do último salário ou da última prestação de solidariedade que receberam. Em troca, os desempregados obrigaram-se  a executar qualquer tarefa exigida pelo Gabinete de Salvação Solidária ( GASO) . A CADE assegurou também a permanência no país  de todo os cidadãos nacionais por  forma a evitar  a debandada geral. Foi validada uma lei que obrigava a emissão de vistos autorizados pelo Governo Central Europeu. Nessa altura, Maio  de 2017, dizia-se que o país já só contava com cinco milhões de habitantes ( menos de metade  da população que existia antes da Grande Crise de  2013).
Os políticos tradicionais  desapareceram. Deputados, homens de partido, autarcas.  As pessoas não os suportavam, culpavam-nos pela situação. De certa forma, não eram necessários. Sem eleições, parlamento ou governo, toda a antiga estrutura política ruiu naturalmente.  Um  céptico leitor de Schmitt diria que o país acolheu  a CADE como ditador suave e dispensou  o sistema partidário. Não foi bem assim.  Os partidos, ao contrário do que era legítimo supor,  mostraram-se cada vez mais ferozes com as personagens  independentes. As pessoas compreenderam
que os partidos  seriam incapazes de se regenerar, não porque fossem partidos, mas porque eram aqueles partidos. Demasiados compromissos, demasiadas mentiras. A emigração não ajudou nada e as novas gerações, despolitizadas, como disse um velho republicano, saíram sem olhar para trás. Alguém ainda mais céptico diria que os partidos acabaram porque não havia lugares para distribuir. Não foi bem assim,  veremos  isso depois, mas quase.





Sem comentários:

Enviar um comentário