II
Enquanto preparava o discurso, o ministro tratava de ser admitido numa grande multinacional de consultadoria, arrumava os pertences ( a peluda, como dantes se dizia na tropa) e enviava a família, com antecedência, para um destino fresco. Muitas individualidades – para usar a classificação preferida dos media - fizeram percursos semelhantes. A retórica do estamos todos no mesmo barco, repetida todos os dias desde o início da Grande Crise, escondeu sempre a existência de um porto de abrigo a poucas braçadas de distância. A esse refúgio aportaram muitos. Alguns aproveitando apenas a sorte e o talento que lhes fez acumular os recursos necessários para escapar, mas também uma cáfila de aldrabões contumazes que trocaram as convicções por uma conta bancária.
Recordo-me de um desses, espécie de rolha que flutuava desde os tempos anteriores ao descalabro, na televisão , a pedir paciência e confiança aos cidadãos. Rita, sentada no chão mas encostada onutra parte do sofá, como se tivesse medo que eu lhe pegasse moléstia, resbunou a certa altura um "não vale a pena". Disse-lhe que não valeria pela figura da televisão, mas talvez por nós.
- Nós, queres dizer mesmo nós? Ainda menos.
Nesses tempos, que parecem já tão distantes como a costa ao náufrago, não sabíamos o que estava para vir. Nem no país nem para o nós de que Rita descria.
Enquanto preparava o discurso, o ministro tratava de ser admitido numa grande multinacional de consultadoria, arrumava os pertences ( a peluda, como dantes se dizia na tropa) e enviava a família, com antecedência, para um destino fresco. Muitas individualidades – para usar a classificação preferida dos media - fizeram percursos semelhantes. A retórica do estamos todos no mesmo barco, repetida todos os dias desde o início da Grande Crise, escondeu sempre a existência de um porto de abrigo a poucas braçadas de distância. A esse refúgio aportaram muitos. Alguns aproveitando apenas a sorte e o talento que lhes fez acumular os recursos necessários para escapar, mas também uma cáfila de aldrabões contumazes que trocaram as convicções por uma conta bancária.
Recordo-me de um desses, espécie de rolha que flutuava desde os tempos anteriores ao descalabro, na televisão , a pedir paciência e confiança aos cidadãos. Rita, sentada no chão mas encostada onutra parte do sofá, como se tivesse medo que eu lhe pegasse moléstia, resbunou a certa altura um "não vale a pena". Disse-lhe que não valeria pela figura da televisão, mas talvez por nós.
- Nós, queres dizer mesmo nós? Ainda menos.
Nesses tempos, que parecem já tão distantes como a costa ao náufrago, não sabíamos o que estava para vir. Nem no país nem para o nós de que Rita descria.
As
outras forças policiais, exangues pelas greves sucessivas e por abandonos constantes, já só garantiam a protecção
de quem ( ainda) lhes
pagava. Alguns bancos, centros comerciais – agora reduzidos a metade da oferta, edifícios e
algumas entidades públicas recebiam o serviço.
A
CADE desdobrou-se em gabinetes civis, equivalentes aos antigos ministérios e os
tribunais deixaram de ter
trabalho: sem economia, com metade da população e poucos bens susceptíveis de
disputa, a lei adormeceu. Foram
nomeados comissariados - um
Nacional e vários regionais com quadros
da antiga ordem administrativa , para trabalhar com os novos patrões,
que se limitavam a executar.
Ao
contrário do que muitos previam, o país não se dedicou ao caos. As pessoas protestavam nas
ruas, sim, mas sem rasgo, quase
como um dever. Nas cidades maiores,
os antigos inspiradores da violência constestatária de esquerda foram
ultrapassados. Gangues de miúdos faziam as vezes dos outrora politizados e
quando se envolviam com a pouca polícia, faziam-no de cara destapada. A CADE assegurou a todos os desempregados um rendimento
mensal mínimo equivalente a metade do último salário ou da última prestação
de solidariedade que receberam. Em troca, os desempregados obrigaram-se a executar qualquer tarefa exigida pelo
Gabinete de Salvação Solidária ( GASO) . A CADE assegurou também a permanência
no país de todo os cidadãos
nacionais por forma a evitar a debandada geral. Foi validada uma lei
que obrigava a emissão de vistos autorizados pelo Governo Central Europeu.
Nessa altura, Maio de 2017,
dizia-se que o país já só contava com cinco milhões de habitantes ( menos de
metade da população que existia
antes da Grande Crise de 2013).
Os
políticos tradicionais
desapareceram. Deputados, homens de partido, autarcas. As pessoas não os suportavam,
culpavam-nos pela situação. De certa forma, não eram necessários. Sem eleições,
parlamento ou governo, toda a antiga estrutura política ruiu naturalmente. Um céptico leitor de Schmitt diria que o país acolheu a CADE como ditador suave e
dispensou o sistema partidário.
Não foi bem assim. Os partidos, ao
contrário do que era legítimo supor,
mostraram-se cada vez mais ferozes com as personagens independentes. As pessoas compreenderam
que
os partidos seriam incapazes de se
regenerar, não porque fossem partidos, mas porque eram aqueles partidos. Demasiados compromissos, demasiadas
mentiras. A emigração não ajudou nada e as novas gerações, despolitizadas, como
disse um velho republicano, saíram sem olhar para trás. Alguém ainda mais
céptico diria que os partidos acabaram porque não havia lugares para
distribuir. Não foi bem assim, veremos
isso depois, mas quase.
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