Um
dos primeiros congressistas que conheci, Pino Correa, fora um famoso ex-
administrador de empresas
públicas, ex-político e
ex-ministro dos tempos de fartura.
Estava já na casa dos setenta e
sabia muito. Começara no partido comunista, a seguir à revolução do século
passado, e depois aburguesou-se, ou
deixou de
disfarçar. Esteve no governo e acabou barão da indústria. Agora era patriota. Gabava-se de ser um
indivíduo responsável e era uma das figuras principais da direcção do Congresso
Nacional. À boca cheia dizia-se que
ficou para trás para colocar amigos em vários cargos da
Europa rica. A idade, a saúde e assuntos familiares desaconselharam a emigração
e assim ia recebendo comissões chorudas e favores de toda a ordem.
Conheci-o
em 2015, por acaso, numa visita de trabalho que fez a Setraga. Eu estava
desempregado e aguardava colocação através do GASO local, mas colaborava com um jornal on-line, que teve vida
curta, com um nome pomposo,
o Dignidade. Trabalhávamos num pequeno gabinete dividido ao meio por um biombo de plástico transparente, o que me permitia olhar com saudade as pernas até ao pescoço, crédito a Hemingway, de Sofia, a grande animadora do Dignidade.
Pino Correa estivera de manhã numa reunião privada
com quadros do Congresso, num hotel, e depois do almoço organizou-se uma
conversa informal com cidadãos noutro hotel da cidade, mais barato (
oficialmente, mais prático). O
pavor à cultura partidária obrigava a estas novas estratégias, mesmo que
toda a gente soubesse que Correa
tinha vindo apenas para a reunião
privada da
manhã e para um jantar de angariação de fundos, que se realizaria à noite.
À
hora marcada dirigi-me ao Hotel
Miranda. Estava curioso para saber quantos eram os cidadãos interessados nas
teses de Correa. À porta do hotel,
alguns homens das televisões e muitos mordomos de Setraga. Aguardei e depois de
entrar passeei por entre os mordomos de cálice na mão e barrigas apertadas nos
fatos decentes. Já havia fotógrafos que captavam as poses dos mordomos e das
suas senhoras e até de um mordomo
com o seu senhor.
Era
assim em Setraga desde o tempo anterior à Grande Crise. Uma corporação em
circuito fechado, medíocre sob todos os ponto de vista. Os políticos quase
analfabetos e sempre carreiristas, um punhado de gente da cultura que escrevia livros horríveis e poemas infantis, mas tudo amigo do seu amigo. E dos
croquetes. Fora deste círculo, a cidade teve ivda antes da Grande Crise e era
uma vida que não se aperaltava para as secções sociais dos jornais locais.
Nesses tempos havia teatro, escrita, fotografia, música. Agora só restavam os
inúteis.
Já
na sala, Correa discorria sobre a necessidade de todos fazermos a nossa parte, e outras
banalidades repisadas, quando,
vindo das últimas filas, um homem se levantou e pediu para colocar uma questão.
Um dos secretários da reunião avisou logo que era altamente irregular porque o
orador não tinha terminado. O homem, magro, dos seus sessenta anos, quase
careca, insistiu com uma voz doce
e suplicante. A mão sapuda de Correa agarrou o microfone.
-
Faça o favor, faça o
favor.
O
homem pigarreou e a sala riu-se nervosamente do nervosismo do espontâneo, mas
foi com calma que o sujeito fez o seu papel.
- Queria saber se o
dr. Correa, acha melhor que o óleo do motor seja mudado quando está quente ou quando está frio.
Correa, um
profissionalão, não se traiu, mas o secretário desatou aos berros com o intruso. Muita gente fez o mesmo
e num ápice dois seguranças
agarraram-no e expulsaram-no da sala. Levantei-me e procurei-os nos corredores. Lá
encontrei o homem, que refilava com os seguranças, assegurando que sairia pelo
seu pé. Acompanhei-o até à rua.
respeitando o seu silêncio.
Já na rua , perguntei-lhe o que quisera
dizer com a história do óleo.
-
Nada de especial, é uma
história, uma anedota de filósofos. Quando um anjo desceu sobre uma convenção
de sábios, autorizou uma pergunta,
verdade que em
moldes especiais, mas
isso agora não interessa. O que interessa é que os filósofos não se entenderam e o anjo partiu.
Nessa altura, um velho
da última fila repetiu a pergunta que tinha proposto no início.
Tossiu
e afastou-se com pressa, de forma
atabalhoada. Quando me virei percebi a causa. Pino Correa estava atrás de mim,
sozinho, com um enorme charuto entre
os dedos curtos e grossos e um sorriso de gatoa das botas. Expliquei-lhe o meu interesse enquanto jornalista ( não era bem um, mas tanto
fazia ) e ele sorriu como fazia nos debates de outras eras.
- A pergunta era sábia. Sobretudo para
quem não tem ar de ter automóvel.
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