sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

                                                                   V




Um dos primeiros congressistas que conheci, Pino Correa, fora um famoso ex- administrador de  empresas públicas,  ex-político e ex-ministro  dos tempos de fartura. Estava já na casa dos setenta  e sabia muito. Começara no partido comunista, a seguir à revolução do século passado, e depois  aburguesou-se, ou deixou de disfarçar. Esteve no governo e acabou barão da indústria.  Agora era patriota. Gabava-se de ser um indivíduo   responsável  e era  uma das figuras principais da direcção do Congresso Nacional. À boca cheia dizia-se que  ficou para trás para colocar amigos em vários cargos da Europa rica. A idade, a saúde e assuntos familiares desaconselharam a emigração e assim ia recebendo comissões chorudas e favores de toda  a ordem.
Conheci-o em 2015, por acaso, numa visita de trabalho que fez a Setraga. Eu estava desempregado e aguardava colocação através do GASO local, mas  colaborava com  um jornal on-line, que teve vida curta,   com um nome pomposo, o Dignidade.  Trabalhávamos num pequeno gabinete dividido ao meio  por um biombo de plástico transparente, o que me permitia  olhar com saudade as pernas  até ao pescoço,  crédito a Hemingway, de Sofia, a grande animadora do Dignidade
Pino Correa  estivera de manhã numa reunião privada com quadros do Congresso, num hotel, e depois do almoço organizou-se uma conversa informal com cidadãos noutro hotel da cidade, mais barato ( oficialmente, mais prático). O pavor à cultura partidária obrigava a estas novas estratégias, mesmo que toda  a gente soubesse que Correa tinha vindo apenas para  a reunião privada da manhã e para um jantar de angariação de fundos, que se realizaria à noite.
 À hora marcada dirigi-me  ao Hotel Miranda. Estava curioso para saber quantos eram os cidadãos interessados nas teses de Correa.  À porta do hotel, alguns homens das televisões e muitos mordomos de Setraga. Aguardei e depois de entrar passeei por entre os mordomos de cálice na mão e barrigas apertadas nos fatos decentes. Já havia fotógrafos que captavam as poses dos mordomos e das suas senhoras e até  de um mordomo com o seu senhor.
 Era assim em Setraga desde o tempo anterior à Grande Crise. Uma corporação em circuito fechado, medíocre sob todos os ponto de vista. Os políticos quase analfabetos e sempre carreiristas, um punhado de gente da cultura  que escrevia livros horríveis  e poemas infantis,  mas tudo amigo do seu amigo. E dos croquetes. Fora deste círculo, a cidade teve ivda antes da Grande Crise e era uma vida que não se aperaltava para as secções sociais dos jornais locais. Nesses tempos havia teatro, escrita, fotografia, música. Agora só restavam os inúteis.
Já na sala, Correa discorria sobre a necessidade de todos fazermos  a nossa parte, e outras banalidades  repisadas, quando, vindo das últimas filas, um homem se levantou e pediu para colocar uma questão. Um dos secretários da reunião avisou logo que era altamente irregular porque o orador não tinha terminado. O homem, magro, dos seus sessenta anos, quase careca, insistiu  com uma voz doce e suplicante. A mão sapuda de Correa agarrou o microfone.
-      Faça o favor, faça o favor.
 O homem pigarreou e a sala riu-se nervosamente do nervosismo do espontâneo, mas foi com calma que o sujeito fez o seu papel.
     - Queria saber se o dr. Correa, acha melhor que o óleo do motor  seja mudado quando está quente ou quando está frio.
      Correa, um profissionalão, não se traiu, mas o secretário desatou aos berros  com o intruso. Muita gente fez o mesmo e num ápice dois seguranças  agarraram-no e expulsaram-no da sala. Levantei-me  e procurei-os nos corredores. Lá encontrei o homem, que refilava com os seguranças, assegurando que sairia pelo seu pé.  Acompanhei-o até à rua. respeitando o seu silêncio.
Já na rua , perguntei-lhe o que quisera  dizer com a história do óleo.
-      Nada de especial, é uma história, uma anedota de filósofos. Quando um anjo desceu sobre uma convenção de sábios,  autorizou uma pergunta, verdade que  em     moldes especiais, mas isso agora não interessa. O que interessa é que os filósofos  não se entenderam e o anjo partiu. Nessa altura, um velho  da última fila repetiu a pergunta que tinha proposto no início.

Tossiu e afastou-se  com pressa, de forma atabalhoada. Quando me virei percebi a causa. Pino Correa estava atrás de mim, sozinho, com um enorme charuto entre  os dedos curtos  e grossos e um sorriso de gatoa das botas. Expliquei-lhe o meu interesse enquanto jornalista ( não era bem um, mas tanto fazia ) e ele sorriu como fazia nos debates de outras eras.
-  A pergunta era sábia. Sobretudo para quem não tem ar de ter automóvel.






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