A
acusação do meu amigo era correcta. Pertenci à mole de gente que assistiu,
inerme, ao desenrolar dos acontecimentos.
Fui vivendo a minha vida, tentando não perder as minhas coisas nem o meu
trabalho. Agora, à distância, esta necessidade parece-me infantil. O meu trabalho não era nada, os meus filhos bem longe, Rita ainda mais longe, mesmo deitando-se ao meu lado todas as noites. A cama era o túmulo do nosso casamento. A acusação era também
extravagante. Não fiz parte de nenhum grupo político, não exerci nenhum cargo,
não tinha qualquer relevância. Desinteressei-me de tudo o que me dizia
respeito, suponho que numa reacção alinhada com a generalidade das pessoas.
O
que o meu amigo queria dizer era que eu poderia ter
feito alguma coisa. Ele fez greve uma ou duas vezes e chegou a ser detido para
averiguações pela antiga polícia. Mais nada. Esses tempos não foram românticos,
não houve tortura, gente atirada de aviões como na Argentina ou
chefes maoris com colecções de
cabeças espetadas em estacas. Todos estavam cansados. Nem ele nem eu imaginávamos o que viria a acontecer.
A CADE instalou-se com o vagar do bolor. O país era fácil de administrar.
Com a população reduzida a metade,
o Governo Central Europeu limitou-se a enviar os fundos necessários para a
sobrevivência mínima das pessoas. O Congresso Nacional tinha um jornal de
pequena circulação, dois ou três sítios na internet e uma
sede em Marília, no edifício que fora de uma grande fundação privada. Os seus
teóricos diziam, concordando com
os radicais, que Portugal era agora
um gueto. A guetização
tornou-se num termo comum, discutido nos cafés, nos autocarros, no metro que
ainda funcionava. Como é habitual nos guetos, do de Veneza ao de Varsóvia, a vida corria como se o gueto não conhecesse os seus muros.
O
pessoal da CADE tratava os congressistas com cortesia. Diziam que era muito
importante o país conservar um
escol político que fosse capaz de assumir a
governação quando a situação se
proporcionasse. Esse escol não podia ser mais diferente - nem mais igual- ao da classe política do
tempo anterior à Grande Crise.
Como já não havia partidos nem eleições, formaram-se dezenas de pequenos congressos, mais ou
menos próximos do Congresso
Nacional. A designação colava bem
à ideia antipartidária e pseudo-civilista, que era agora muito bem recebida.A selecção natural funcionou e os congressos que conseguiram reunir a gente
mais capaz, leia-se, melhor relacionada,
sobreviveram e cresceram. Esta gente era, de facto, um escol e os seus melhores atributos eram
culturais: os
conhecimentos, as cumplicidades, a proximidade de parentesco. Num país pequeno,
estes anqueos duravam séculos.
Os
abonados – autodesignação irónica
dos que trabalhavam para o GASO – classificavam os congressistas de mordomos. Isto
reflectia uma das diferenças
mais vincadas, mas também simplistas – que a sociedade exibiu , em pleno, a partir de 2017. Os
mordomos eram pessoas com rendimentos e meios que não foram, por arte e engenho, sugados pela Grande Crise. A chegada da CADE
permitiu-lhes respirar e manter um razoável nível de vida. Os mordomos ainda faziam férias, ainda viajavam,
enfim, protagonizavam o papel normal da classe média europeia.
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