quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

                                                                      IV



A acusação do meu amigo era correcta. Pertenci à mole de gente que assistiu, inerme, ao desenrolar  dos acontecimentos. Fui vivendo a minha vida, tentando não perder as minhas coisas nem o meu trabalho.  Agora, à distância, esta necessidade parece-me  infantil. O meu trabalho não era nada, os meus filhos bem longe, Rita ainda mais  longe, mesmo deitando-se ao meu lado todas as noites. A cama era o túmulo do nosso casamento. A acusação era  também extravagante. Não fiz parte de nenhum grupo político, não exerci nenhum cargo, não tinha qualquer relevância. Desinteressei-me de tudo o que me dizia respeito, suponho que numa reacção alinhada com a generalidade das pessoas.
O que o meu amigo queria dizer era que eu poderia  ter feito alguma coisa. Ele fez greve uma ou duas vezes e chegou a ser detido para averiguações pela antiga polícia. Mais nada. Esses tempos não foram românticos, não houve tortura,  gente  atirada de aviões como na Argentina ou chefes maoris  com colecções de cabeças espetadas em estacas. Todos estavam cansados.  Nem ele nem eu imaginávamos o que viria a  acontecer.
A CADE instalou-se com o  vagar do bolor. O país era fácil de administrar. Com  a população reduzida a metade, o Governo Central Europeu limitou-se a enviar os fundos necessários para a sobrevivência mínima das pessoas. O Congresso Nacional tinha um jornal de pequena circulação, dois ou três sítios na internet  e uma sede  em Marília,  no edifício que fora  de uma grande fundação privada. Os seus teóricos  diziam, concordando com os radicais, que Portugal era agora  um gueto. A guetização tornou-se num termo comum, discutido nos cafés, nos autocarros, no metro que ainda funcionava. Como é habitual nos guetos, do de Veneza ao de Varsóvia, a vida corria como se o gueto não conhecesse os seus muros.
O pessoal da CADE tratava os congressistas com cortesia. Diziam que era muito importante o país conservar  um escol político  que fosse capaz de assumir a governação  quando a situação se proporcionasse. Esse escol não podia ser mais diferente - nem mais igual-  ao da  classe política do  tempo anterior à Grande Crise.  Como já não havia partidos nem eleições,  formaram-se dezenas de pequenos congressos, mais ou menos  próximos do Congresso Nacional. A designação  colava bem à ideia antipartidária e pseudo-civilista, que era agora muito bem recebida.A selecção natural funcionou e os congressos que conseguiram reunir a gente mais capaz, leia-se, melhor relacionada,  sobreviveram e cresceram. Esta gente  era, de facto, um escol e os seus melhores atributos eram culturais: os conhecimentos, as cumplicidades, a proximidade de parentesco. Num país pequeno, estes anqueos duravam séculos.
Os abonados – autodesignação irónica dos que trabalhavam para o GASO – classificavam os congressistas de mordomos.  Isto reflectia uma das  diferenças mais  vincadas, mas também  simplistas – que a sociedade  exibiu , em pleno, a partir de 2017. Os mordomos eram pessoas com rendimentos e meios que não foram, por arte  e engenho, sugados  pela Grande Crise. A chegada da CADE permitiu-lhes respirar e manter um razoável nível de vida. Os mordomos  ainda faziam férias, ainda viajavam, enfim, protagonizavam o papel normal da classe média europeia. 



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