Hoje
é difícil acreditar, mas, nesse tempo, até à chegada da CADE, o país entrou em
autogestão. Os últimos recursos disponíveis foram consumidos e novas dívidas
foram contraídas, já na perspectiva da intervenção do Governo Central Europeu.
Nos
anos anteriores, a partir do início de 2014, os governos de concentração ( uma antiga designação dos tempos pós-Franco, em
Espanha) sucederam-se em carrossel. Cada primeiro-ministro apostava em vencer a
crise e apelava ao sentimento nacional. O estado de estupor era tal que as
pessoas não chegaram a revoltar-se , salvo algumas escramuças . O mercado
negro fez a sua demonstração de
força e a válvula de escape foi a emigração em massa. O país foi encolhendo:
hospitais, escolas, empresas, serviços. Os que ficaram foram os que não podiam,
por um motivo ou outro, sair.
Constituiram o que , mais tarde, seria definido pelos sectores radicais,
de guetizados, presos no gueto.
Até
á chegada da CADE, o tempo não correu: saltou. Cada empréstimo, cada corte
ou cada família, que deixavam um
velho ou crianças para trás,
marcava o ritmo sobressaltado. De certa forma, gerou-se um espírito de pelotão de fuzilamento, porque menos gente significava menor aperto, os
empréstimos permitiam o mínimo de
normalidade, os cortes já não impressionavam ninguém. Os saltos autorizavam uma
espécie de ansiedade, de curiosidade doentia sobre o que seria o fim.
Em
Julho, Jules Bomba, no editorial
de um prestigiado semanário, sintetizava o sentimento da população mais
instruída. Guardei o recorte de velho papel:
“
Acabou. Do país ficou o território, as casas e as memórias. Foi-se tudo o que
construímos e tudo o que desperdiçámos. Agora resta-nos viver a pão e laranjas, conquanto que haja
laranjas”.
Bomba,
um jovem assistente universitário de direito, tinha sido comentador televisivo
e colunista durante os anos da derrocada. A
sua cara de doninha e opiniões firmíssimas começaram a ser familiares. Relacionou-se com as figuras do poder até à altura de cortar
os laços. Depois ficou mais um coveiro.
É
impossível sumariar todos aspectos da vida do país no início do Outono de 2017.
Quem pegasse no carro, com a
gasolina a vinte euros , numa segunda-feira de manhã, cuidaria de
passear num antigo sábado modorrento. Estranharia, no entanto, o lixo amontoado em redor dos contentores sufocados e as novas
viaturas da força anti-motim da DINATE. Este corpo policial foi constituído
agrupando elementos ainda lúcidos das antigas polícias e forças armadas, combinando-os
com elementos trazidos pela CADE. Circulavam em SUV’s pretos e detinham
quaisquer arruaceiros ou manifestantes não autorizados. Aos poucos, a calma regressou.
A
viagem, suponhamos , de Marília a
Setraga, onde eu vivia, far-se-ia em auto-estradas quase desertas. Ao
contrário, se o viajante optasse pelas estradas secundárias, mergulharia em
infindáveis comboios de carros, camionetas, motos e bicicletas, mas apenas em
algumas alturas do dia. Não havia
muita vida, estava era concentrada em determinados períodos. Mantendo-se
na autoestrada, saíria numa Luzia com metade das faculdades
encerradas. Muitos dos estudantes conseguiram sair do país antes da CADE,
outros regressaram às suas terras onde se amontoaram com desistentes de muitas
das universidades de cidades mais pequenas. Nesse Outono, creio que na terceira
semana de Setembro, encontrei um amigo que ainda era professor na universidade em Luzia.
Estava de passagem por Setraga. Não o via
há um ano, comunicávamos raramente
por email, fiquei espantado. Calmo por natureza, parecia nessa tarde um
cão de combate.
- Já
viste? Já viste no que deu a vossa
mania de paninhos quentes? De que te serve isso agora? Querias paz e essa
merdas para quê?
Deixei-o
falar, os olhos de canário, nervosos, a voz rosnada.
Era um sentimento comum a uma elite
intelectual, angustiada e negada. Pior do que o empobrecimento e a humilhação, esta elite lamentava a
perda de influência. Os melhores alunos tinham partido, os media não queriam
dar a palavra a juristas,
filósofos ou escritores. Não tinham nada para dizer, pouco para fazer e, agora,
sítio nenhum para onde ir. As redes sociais, tão populares antes da Grande
Crise, eram agora inutéis: já pouca gente tinha acesso aos dispositivos
electrónicos, ou paciência para eles. Uma minoria ainda trocava textos furiosos em circuito fechado,
cheguei a participar, meio distraído, nessas arenas, mas sem resultado prático. Os media não os ampliavam,
antes pelo contrário: ignoravam-nos.
Os principais jornais e canais televisivos continuavam , como antes da
Grande Crise, centrados na pequena vida da capital, Marília. Ainda existia um círculo de
beau monde provinciano, que incluia vedetas de TV,
humoristas do regime e analistas políticos pagos para acalmar as massas. Estes
eram muito importantes, porque, ao
lado da pobreza generalizada,
continuavam a existir salários principescos pagos a mordomos que
administravam um punhado de
empresas públicas que a CADE deixou
ficar. Era necessário um trabalho de linguagem para que a temperatura não aumentasse. A luta“contra
a anarquia”, contra a “inveja
social” e contra a “dissolução da coumunidade” faziam
parte desse léxico.
Admirável Mundo Novo revisited
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