terça-feira, 22 de janeiro de 2013

                                                                    III

 
Hoje é difícil acreditar, mas, nesse tempo, até à chegada da CADE, o país entrou em autogestão. Os últimos recursos disponíveis foram consumidos e novas dívidas foram contraídas, já na perspectiva da intervenção do Governo Central Europeu.
Nos anos anteriores, a partir do início de 2014, os governos  de concentração ( uma antiga designação dos tempos pós-Franco, em Espanha) sucederam-se em carrossel. Cada primeiro-ministro apostava em vencer a crise e apelava ao sentimento nacional. O estado de estupor era tal que as pessoas não chegaram a revoltar-se , salvo algumas escramuças . O mercado negro  fez a sua demonstração de força e a válvula de escape foi a emigração em massa. O país foi encolhendo: hospitais, escolas, empresas, serviços. Os que ficaram foram os que não podiam, por um motivo ou outro, sair.  Constituiram o que , mais tarde, seria definido pelos sectores radicais, de  guetizados, presos no gueto.
Até á chegada da CADE, o tempo não correu: saltou. Cada empréstimo, cada corte ou  cada família, que deixavam um velho ou crianças para trás,  marcava o ritmo sobressaltado. De certa forma, gerou-se um espírito de  pelotão de fuzilamento, porque menos gente significava menor aperto, os empréstimos  permitiam o mínimo de normalidade, os cortes já não impressionavam ninguém. Os saltos autorizavam uma espécie de ansiedade, de curiosidade doentia sobre o que  seria o fim.
 Em Julho,  Jules Bomba, no editorial de um prestigiado semanário, sintetizava o sentimento da população mais instruída. Guardei o recorte de velho papel:


“ Acabou. Do país ficou o território, as casas e as memórias. Foi-se tudo o que construímos e tudo o que desperdiçámos. Agora resta-nos viver a pão  e laranjas, conquanto que haja laranjas”.

Bomba, um jovem assistente universitário de direito, tinha sido comentador televisivo e colunista durante os anos da derrocada. A sua cara de doninha e opiniões firmíssimas começaram a ser familiares.  Relacionou-se com as  figuras do poder até à altura de cortar os laços. Depois ficou mais um coveiro.
É impossível sumariar todos aspectos da vida do país no início do Outono de 2017. Quem  pegasse no carro, com a gasolina a vinte euros , numa  segunda-feira de manhã, cuidaria de passear  num antigo  sábado modorrento. Estranharia, no entanto, o lixo amontoado em redor dos contentores sufocados e as novas viaturas da força anti-motim da DINATE. Este corpo policial foi constituído agrupando elementos ainda lúcidos das antigas polícias e forças armadas, combinando-os com elementos trazidos pela CADE. Circulavam em SUV’s pretos e detinham quaisquer arruaceiros ou manifestantes não autorizados. Aos  poucos, a calma regressou.
A viagem, suponhamos ,  de Marília a Setraga, onde eu vivia, far-se-ia em auto-estradas quase desertas. Ao contrário, se o viajante optasse pelas estradas secundárias, mergulharia em infindáveis comboios de carros, camionetas, motos e bicicletas, mas apenas em algumas alturas do dia. Não havia  muita vida, estava era concentrada em determinados períodos. Mantendo-se na autoestrada, saíria numa Luzia com metade das faculdades
 encerradas.  Muitos  dos estudantes conseguiram sair do país antes da CADE, outros regressaram às suas terras onde se amontoaram com desistentes de muitas das universidades de cidades mais pequenas. Nesse Outono, creio que na terceira semana de Setembro, encontrei um amigo   que ainda era professor na universidade em Luzia. Estava de passagem por Setraga. Não o via  há um ano, comunicávamos raramente  por email, fiquei espantado. Calmo por natureza, parecia nessa tarde um cão de combate.
     -  Já viste? Já viste  no que deu a vossa mania de paninhos quentes? De que te serve isso agora? Querias paz e essa merdas para quê?
Deixei-o falar,  os olhos  de canário, nervosos, a voz rosnada. Era um sentimento comum a uma elite  intelectual, angustiada e negada. Pior do que o empobrecimento e  a humilhação, esta elite lamentava a perda de influência. Os melhores alunos tinham partido, os media não queriam dar a palavra  a juristas, filósofos ou escritores. Não tinham nada para dizer, pouco para fazer e, agora, sítio nenhum para onde ir. As redes sociais, tão populares antes da Grande Crise, eram agora inutéis: já pouca gente tinha acesso aos dispositivos electrónicos, ou paciência para eles. Uma minoria ainda trocava textos furiosos em circuito fechado, cheguei a participar, meio distraído, nessas arenas, mas sem resultado  prático. Os media não os ampliavam, antes pelo contrário: ignoravam-nos. 
Os principais  jornais e canais televisivos continuavam , como antes da Grande Crise, centrados na pequena vida da capital,  Marília. Ainda existia um círculo de beau monde  provinciano, que incluia vedetas de TV, humoristas do regime e analistas políticos pagos para acalmar as massas. Estes eram muito importantes, porque,  ao lado da pobreza generalizada,  continuavam a existir salários principescos pagos a mordomos que administravam  um punhado de empresas públicas que a CADE deixou  ficar. Era necessário um trabalho de linguagem para que  a temperatura não aumentasse. A luta“contra a  anarquia”, contra a “inveja social”  e contra  a “dissolução da coumunidade” faziam parte desse léxico.



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