quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

                                                              VI


 
O Congresso Nacional não era  uma organização de hierarquia clássica. Em várias cidades, ligadas  pela pouca tecnologia utilizada (  a queda do poder de compra e  a emigração de gerações mais novas reduziu o número de utilizadores)  e por alguns entusiastas em carne e osso, formaram-se pequenos círculos inspirados pelos nomes mais sonantes de Marília .  Durio, a segunda cidade  do país,  desapareceu politicamente do mapa, se é que alguma vez lá esteve, porque os seus melhores quadros  caíram em desgraça -  viviam em quintarolas minhotas a fazer vinho ou emigraram como executivos bem pagos.
 Em Outubro de 2017 decidi que não podia mais. Os meus filhos tinham partido há quase um ano, ainda a tempo de evitar aproibição  de emigrar .  O João, o mais novo,  para o Canadá, o Miguel para Inglaterra. Eu e a minha mulher já só nos tolerávamos e a linguagem resumia-se à troca de informações sobre a vida dos miúdos. Não senti nenhum chamamento, nenhuma inclinação. A verdade foi mais simples:  não podia sair e já não conseguia ficar .





Resolvi deixar tudo no dia  25 de Outubro de 2017. Vivíamos num apartamento mais pequeno, arrendado. Uma sala, um quarto, a casa de banho  e uma cozinha. O anterior, grande e bom,  foi entregue ao banco quando o segundo dos miúdos foi embora, em Julho de 2016, mais coisa menos coisa. O costume adoptado por  casais na nossa situação foi o de partilhar apartamentos. Outros  alugavam quartos em casas de velhos sozinhos. Isto era mais do que uma opção, era um dever: não havia a possibilidade de sustentar a hipoteca de uma casa sem salários normais.    Preferimos manter a privacidade, cortando  noutras coisas.  Livros e filmes corriam de mão em mão, os qu epodiam descarregavam o material da internet. Muitas vezes passava na minha antiga rua e olhava para o prédio e para a vida  que se foi.  Em Setraga, como nas cidades  de dimensão razoável, as boas casas não ficaram vazias muito tempo. O pessoal técnico da CADE e os filhos e amigos  dos mordomos  treparam por elas  como esquilos.
 Discuti, pela centésima vez,  os termos da minha opção com a Rita, que pouco falou. Se tivesse falado seria para repetir o habitual:  Melhores tempos virão, tens de ter paciência, não podes ser assim.  O meu amigo acusava-me de inacção,  a minha mulher apontava-me um feitio inconformado. Talvez não inconformado, talvez fraco e infantil. Talvez ambos tivessem razão, talvez eu rosnasse em casa mas fosse dócil e alheado na rua. Talvez nada.
A  obsessão da Rita  com as vidas dos miúdos, com o futuro dos miudos e com o pouco trabalho que ainda tinha, preenchia-a. Nessa manhã, enquanto arrumava  a mochila, coisa que nem em adolescente  usei, senti-a na casa de banho. Quando  fui buscar a tesoura da barba, cruzámo-nos  e quase chocámos, ou chocámos mesmo,  não sei. Quando  não há distância crítica, aquela que faz com que uma pessoa, se desvie de outra , já não somos pessoas. Nem animais. Isto pode parecer um psicodrama, mas naquela altura era  a minha vida , um bom pedaço  da minha vida, que acabava sem clangor.




Tanto se lhe dava se eu ficava ou se ia. Pela minha parte, só me preocupava  com a hipótese de conseguir fazer alguma coisa. Como não podia  ir ter com os miúdos e não aguentava mais  a simulação de trabalho que tinha nem o ar que respirava em Setraga, sentia-me colado a ela.  Assim foi  melhor, as separações só são difíceis quando ainda há distância.
Ela disse-me adeus quando saiu, eu respondi, rígido, enquanto revi papeladas  avulsas  em cima da mesa da  sala.  Volto muitas vezes a esta cena, uma manhã molhada e abafada, uma despedida sem um pingo de sangue. Tento  saber se o que nos aconteceu foi  causado  pelo estado das coisas  ou se também teria acontecido se as nossas vidas  se tivessem desenrolado  como seria normal. Se tivéssemos as nossas profissões, a nossa casa, os nossos filhos  em nossa  casa, ou mais perto dela e as vidas deles entrelaçadas  nas nossas. A única conclusão a que chego  é que mesmo em épocas excepcionais  nos dedicamos  a análises vulgares.





Abandonar Rita, Setraga e o meu trabalho,  foi  abandonar algo que, por alguma razão, apodreceu. Não me custava de forma especial, nem tinha sequer o prazer  suspeito de abandonar. O país passara  a conjugar  o verbo  com eficiência. Abandonava-se a  cidade  onde se vivia, o próprio país ( antes da proibição da CADE) , qualquer trabalho monótono e  disparatado. O sentimento de abandono assentou na comunidade. É necessário recordar que os que ficaram foram os que não puderam sair.
Uns dias antes, compareci na delegação  do GASO . Tinham-me colocado numa escola primária  a dar apoio a crianças com dificuldades de aprendizagem. Havia cada vez menos crianças, por isso havia cada vez menos trabalho Trabalhava duas horas por dia, sempre de tarde, e ganhava 400 euros. Limitava-me  a ler com os garotos, a rever a tabuada e  a fazer macaquices no computador. Ninguém  se importava se eu fazia bem o trabalho. Eu também não. Aquele era o meu trabalho, se bem que eu já não soubesse qual era o meu trabalho. A situação fez-me o que fez a muita gente: obrigo  a fazer o que fosse preciso. Aqueles garotos teriam  um futuro igual ao meu, a trabalhar para o GASO,  talvez a dar aulas de apoio aos futuros  abonados.







Fui ao gabinete do vice-director, um lambe-botas  de apelido Vedia ( nunca cheguei a saber o primeiro nome), que, nos bons tempos, foi director regional  da educação, nomeado pelo partido local, tendo sucedido a um aparelhista semelhante, mas de outra filiação partidária. Quando os partidos  deram de si, corria nas tertúlias políticas a ideia de que, pelo menos, acabava o carreirismo. Engano puro. Na educação, por exemplo,  continuaram a ser nomeados indvíduos que julgavam que paideia era um palavrão. 
A secretária não estava no seu posto e por isso bati logo à porta. Mandou-me entrar. Sem me sentar, cumprimentei-o e disse-lhe que  me ia embora.
       - Não é assim tão simples .
Olhei  para  ele e arrependi-me da minha estupidez. Tinha pensado nisso.
Devia  ter ido embora sem  dizer nada.  Enquanto ele arengava sobre responsabilidade, compromisso com o futuro e outras porcarias,  revi a táctica
-       Tenho a declaração de desobrigação pronta. Enviei-a por correio electrónico e  quero saber onde deixo a versão em papel.  Não sou obrigado  a ficar.
Foi como se estivesse  a falar da metereologia. Não me ligou patavina e continuou a dizer que não, que não era assim, que depois falaríamos. E sublinhou:
-       Sabe que perde o subsídio de integração, não sabe? E que o perde por um perído  nunca inferior a cinco anos? Ou seja, ou vai roubar ou trabalhará de borla num qualquer CEREAL.

 Os CEREAL, os centros de readaptação funcional, eram agências  da CADE  que distribuiam  tarefas aos que que  não tinham nenhuma. As pessoas eram alojadas em antigas escolas, instalações de empresas desactivadas, enfim, o que estivesse  abandonado. Agradeci-lhe a projecção, larguei o papel da demissão em cima da mesa  e fui-me embora
Desde que não me chateassem, estava-me nas tintas. O que ganhava impedia-me de viver fora  do  sufoco da nova regência.  No apartamento que ia deixar já não tinha os meus livros, só não vendera  uma vintena, dormia acordado a ver televisão e  alimentava-me dos MONUCO  ( Módulos  de Nutrição Compensada) . Os MONUCO, os moluscos, como lhes chamavam, eram iguais em todo o lado.  Sete almoços e sete jantares, individuais, cada um com uma sopa de pacote, um pedaço de peixe ou carne, refrigerados, uma peça de fruta, uma embalagem de arroz ou batatas ( às vezes grão  ou feijão) pré –cozinhada.
Fosse como fosse, a ida ao GASO não tinha alterado nada e aquela manhã de Outubro cumpriu  a sua tarefa. Mochila às costas com duas mudas de roupa, dois pacotes de bolachas,   tesoura da barba, um sabonete, a escova de dentes, uma toalha e um tubo de vitaminas.  Numa bolsa  lateral enfiei  duas folhas de papel. Uma era um pedaço de uma mensagem que o meu filho mais velho, o João,  me tinha enviado há uns meses e que eu não aceitava nem compreendia:

  Claro que não volto. A mamã  pensa que sim, mas não. Impossível. Tu é que tens de dar apoio e trabalhar e viver  a tua
vida até que a situação se resolva. Não estás preso, só não podes sair do país. Aí podes fazer o que quiseres, tens muito tempo livre e pensar não custa dinheiro”. 

Precisei  de guardar estas palavras para o dia em que as pudesse  aceitar e compreender. Como muitos da sua idade, o João dividia o país. Uma metade, a que ele deixou para trás, feita pela  geração dos pais e dos avós, rançosa  e culpada. A outra, que haveria de ser feita pela geração dele, à distância, espalhada pela  Europa,  Brasil,  América, Angola, supensa e adiada. Não  o podia criticar nem aconselhar, o que era mais grave. Uma vez perguntei-lhe como era isso de fazer um país  do outro lado do mar, do outro lado da fronteira. Respondeu-me que  não sabia, mas que se os da  sua geração tivessem sucesso, podiam sempre regressar e se falhassem não prejudicariam os que  ficaram nem as gerações seguintes. O despeito estava a caminho de se tornar uma  religião monoteísta.




1 comentário:

  1. "O problema é que os radicais, da RENA ( Resistência Nacional) ou do NOSSO ( Novo Socialismo), ofereciam apenas caos. Agarrados aos velhos sonhos, marxistas e leninistas, reciclados nos Zizeks e Badious, diziam às pessoas para erguer barricadas. Ninguém lhes ligava, o que quase me fazia ficar do lado deles. Depressa me passava a empatia, porque os radicais persistiam em desprezar as dificuldades das pessoas."


    A questão aqui é se é mesmo assim ou se é antes a melancolia quase extrema do narrador que tinge tudo o que toca?

    João.

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