XIII
Carlo
decidiu seguir por uma estrada
ainda mais secundária, junto à costa. Estaríamos, talvez, por alturas do Bojo, quando vimos, ao fundo de uma recta, a estrada bloqueada. Um jipe
e um tractor, alguns homens e cães. Por um instante figurei num filme italiano dos anos 60. Campos de trigo e pasto,
de um lado e do outro, os homens
com elegantes casacos verdes de caça, alguns com caçadeiras debaixo do
braço. Ao pé do tractor, dois empregados seguravam quatro mastins, babosos e policiais, talvez dogues argentinos.
Carlo
abrandou. Não se viam outros carros, e aproximámo-nos da barreira. Foi então
que notámos , do meu lado da estrada, na berma, caídos num talude, dois desgraçados. Estvam cobertos de sangue.
Eram miúdos, talvez de vinte e poucos anos, com ar de rastas. Ele com o cabelo
entrançado, ela de cabeleira vermelha curta. Tinham cortes e arranhões nos braços, as calças
rasgadas e estavam deitados de barriga para cima.
O
que temia aconteceu. O jipe
recuou um ou dois metros, para no s dar
passagem, mas Carlo parou o carro,
abriu o vidro e perguntou. O que é que se passa? Um dos
homens, o mais velho, de cabelo branco
puxado atrás e suiças de ganadeiro, foi pedagógico - Desanda senão fodo-te os cornos.
Carlo
arrancou murmurando palavrões e dúvidas. Estavam mortos? Viste aquela merda?
Filhos da puta. Sabíamos o que tinha
acontecido, não sabíamos por que
tinha acontecido. Muitos
miúdos dos arredores de Marília , e de outras
zonas do país, rumavam a sul à
procura de bebedeiras baratas e sol. Mesmo em Outubro era possível fazer a
festa. Alguns velhos
proprietários da zona agrícola, sobreviventes à ruína do país, que antecede o turístico sul, não apeciavam a vagabundagem .
Corriam notícias de pequenos
roubos e algazarras , mas a violência extrema era rara. Ou pleo menos assim pensava eu, enfiado na pena que sentis de mim.Disse a Carlo
para parar no Bojo e tentar saber o que se passara.
- Sabia que eras dos nossos.
Não
era, mas pouco importava. O
incidente, a juntar aos que se começavam a acumular – o gabinete do GASO
destruído, a Castanhada - era
estranho. Dir-se-ia que a irritação escapava por pequenos buracos de toupeira.
A
tabuleta tinha a palavra “deserto” escrita a azul por baixo do nome da terra. Uma e outra casa baixa
e caiada, com rebordo azul antes das telhas, e depois a rua
principal. Seguimos a orientação
“centro”, “escola” e “Câmara
Municipal”. Já não havia
câmaras municipais, mas no Bojo o tempo parecia mais sábio e não se
precipitava. Passámos a igreja
e a tal câmara municipal, agora
fechada, como todas, e estacionámos num largo cercado de
oliveiras e laranjeiras. Nas zonas rurais, a DINATE não tinha
representação. A autoridade e a lei eram
asseguradas por empresas privadas pagas pela CADE. Com frequência essas empresas alojavam-se no gabinete do GASO local. Foi para lá que nos dirigimos.
Estava
fechado, já passava das seis da tarde. Uma mulher , de bata e lenço na
cabeça, do outro lado do passeio,
meteu conversa. O que queríamos, se vinhamos receber deles, a esta hora já não atendem ninguém etc.
Achei
que não fazia mal perguntar-lhe. Queríamos apresentar uma queixa. Onde estavam os seguranças?
-
Estão lá adiante na
estrada a ajudar o senhor engenheiro.
Uma canalha andou por aí
ontem a ensarilhar mas houve uns
que ficaram dormir ali em baixo ao pé da farmácia e
o senhor engenheiro levou-os daqui para fora.
Carlo arengou qualquer coisa sobre a inevitável corrupção das empresas privadas de segurança, o grande capital, a colonização, as velhas alianças.
Encolhi os ombros, aquela guerra não era minha. Carlo começou finalmente
a ferver.
-
Estás muito enganado.
Todas as guerras são nossas, porque não as escolhemos, elas é que nos escolhem.
Perguntei-lhe
o que queria então fazer. Esperar ali, talvez no carro, talvez numa pensão?
Para quê? Para entrevistar os
seguranças no dia seguinte? Carlo amuou. Voltámos ao carro. Abri o vidro e
acendi um cigarro. E agora?
Seguimos
para sul. Carlo olhava-me de
soslaio. Ou eu era um cobarde ou
estava-me nas tintas . Expliquei-lhe que contra homens armados não há valentes só mortos desarmados. Preferi interrogá-lo
sobre aquelas migrações de miúdos
para Sul. Não apreciou. Não lês jornais em Setraga? Não há lá televisão? Vai-te lixar.
Fui a remoer o episódio. Claro que sabia de
conflitos entre bandos de miúdos que vagueavam pelo país e as populações
locais, mas uma barreira na estrada e tipos meio-mortos na berma era outra
realidade.
Em
parte Carlo tinha razão. Há muito
tempo que me isolara, a televisão
que via era à base de enlatados
americanos entorpecentes. Já nem sabia há quantos meses não via um telejornal do princípio ao fim. E para quê?
Para me enfiarem entrevistas
de mordomos e burocratas da
CADE muito satisfeitos com a calma, a ordem e a
recuperação? Ou com o regresso da normalidade? Passava. Nem havia calma nem
haveria normalidade. A calma a ordem eram aparentes. Podem dizer-me
que é assim em qualquer território, mas nós não éramos um território qualquer.
O que estava à superfície era mantido por uma enorme tensão sem política nem ideologia. A tensão era mais religiosa e a sobrevivência
era Deus.
Chegámos
aos arredores de Farvira, já em pleno sul. As terreolas iam-se sucedendo,
pontuadas por oficinas e lojas
abandonadas, mas já cheirava a
turismo. Em casas particulares, as
tabuletas anunciavam preços
imbatíveis. Bares, cafés e cervejarias, todos com as mesmas esplanadas de cadeiras e mesas
de plástico, os mesmos toldos e o mesmo patrocinador, uma cerveja dinamarquesa.
A diferença para o resto do país assentava na chegada rotineira de
estrangeiros com dinheiro. Só que, ao contrário dos velhos tempos, eram cada
vez menos e escoavam-se para os hoteís de luxo junto às praias. As grandes
cadeias de hotelaria, as famosas multinacionais, ficavam com os lucros e os locais eram vistos como uma praga
de andrajosos que devia ser evitada
com firmeza. Lembrei-me de
uma reportagem televisiva que tiha
visto, há muitos anos, sobre a segregação entre turistas e nativos numa
estância de luxo numa ilha da costa ocidental africana. Passando por uma
amostra, provoquei o meu motorista.
-
Esta gente não se
importa. Vivem como porcos
Carlo
era esperto. Continuou calado mas traiu a calma ao fazer uma passagem de caixa
desnecessária e o carro soluçou. O efeito não o impediu de embalar para uma catilinária . Só me tinha
trazido porque estava assim programado e dera a sua palavra.
Isto
era bizarro, porque ele não me
conheci a de lado nenhum ( o relacionamento por interposta pessoa não conta) e
levava-me para participar num
atentado. O espírito Mano Negra não me era familiar, mas continuava a achar pateta
aquele tipo de recrutamento. A curiosidade infantil é, contudo, sempre fiel.
Resolvi alinhar e calei-me até chegarmos ao destino. Desta vez não era uma
moradia bucólica. Carlo parou o carro no centro de Farvira, diante de um hotel barato. Não havia movimento nesta altura do ano não
estava ninguém na recepção.
Subimos num
elevador a cheirar a cenoura cozida e Carlo bateu à porta de um quarto no
segundo andar. Um homem magro, com ar de
hippie e velho como um
hippie velho, abriu a porta e deu
um abraço a Carlo. Lá dentro, sentados na cama, estava um casal de
garotos, já mais hippie chic, a
partilhar um charro que empestava
o ambiente. Mais do que
surreal, era cómico.
Sem comentários:
Enviar um comentário