Quase
sem dinheiro e sem sítio para onde
ir, sentei-me, naquele final de tarde, num banco de uma pequena e sossegada praça de Farvira. Enquanto fumava, tentava afastar ainda mais os últimos laços. Rita, os miúdos, a minha infância na minha cidade, tudo engolia um cliché marcial: o da irrealidade. Trabalhos de Procusto, porque sabia bem o que era irreal: aquele cigarro.
Comecei a reparar na mudança de energia quando um homem escorregou. Levantou-se e desatou a correr ( provavelmente já viria a correr, pelo que apenas retomou a disposição) . Notei uma jolda apressada que entrou num café a dois passos do meu poiso. Curioso, mantive-me quieto no meu panóptico e continuei a registar. Passado um bocado, ouviram-se sirenes ao longe. Das ruas vizinhas à praça afluiram grupos e pessoas isoladas. Alguns paravam a conversar, outros continuavam, excitados. Resolvi sair do meu posto de observação e dirigi-me ao café .
Comecei a reparar na mudança de energia quando um homem escorregou. Levantou-se e desatou a correr ( provavelmente já viria a correr, pelo que apenas retomou a disposição) . Notei uma jolda apressada que entrou num café a dois passos do meu poiso. Curioso, mantive-me quieto no meu panóptico e continuei a registar. Passado um bocado, ouviram-se sirenes ao longe. Das ruas vizinhas à praça afluiram grupos e pessoas isoladas. Alguns paravam a conversar, outros continuavam, excitados. Resolvi sair do meu posto de observação e dirigi-me ao café .
Passei
pelo grupo que conversava à entrada e não consegui entender bem a origem
do tumulto, mas qualquer coisa acontecera em Marília. Já
dentro do café, a algazarra era
enorme e isso surpreendeu-me. Não
estava habituado a uma excitação assim sem ser por causa de futebol. Na
televisão apareceu o comissário
nacional do Interior, na altura, Ante Sylba. O
comissariado tinha sido cercado por populares que, não se sabe como,
acabaram por entrar no edifício e
proclamaram a independência
nacional e a demissão de todos os comissários presentes. O do Interior estava no gabinete central da
CADE, por isso escapou. Fazia
agora uma alocução ao país. Lamentava
a situação e prometia ao regresso à normalidade, que seria inevitável. O sítio electrónico do Comissariado Nacional,
segundo me disse uma mulher de cabelos nervosos ao meu
lado, que consultava o seu smartphone,
também publicou um comunicado a garantir o retorno à normalidade. Não dizia era quando nem como.
A normalidade ganhara aura de mito. As pessoas tinham sido forçadas a tempos anormais, a uma sucessão de tempos anormais. Primeiro, a partir de 2012, uma crise económica acentuadíssima. Depois, entre 2013 e 2016, assistiram, e participaram, na derrocada de vários suportes da sociedade como sempre a tinham conhecido. A dissolução dos partidos, a emigração em massa de gente que em condições normais nunca emigraria, o desligar dos laços com a Europa rica ou, pelo menos, remediada. Finalmente, nos primeiros meses de 2017, a vida sem governo, sem parlamento, sem chefe do Estado, sem Estado. Neste caldo, a chegada da CADE, e a intervenção directa do Governo Central Europeu, a todos os títulos anormal, aparecia como a semente do regresso à …normalidade.
A
lógica dos acontecimentos em Marília pressupunha o envio de forças da DINATE para o
edifício do Comissariado e era isso que aguardávamos. Estranhamente, não havia
notícia da demonstração de força.
O que era estranho era a nossa amnésia. O ordenamento legal do país,
imposto pela própria CADE,
interditava a intervenção
da DINATE em manifestações de carácter político, sempre que estas tivessem como
alvo instituições exclusivamente nacionais e não pusessem em risco pessoas ou bens. Um homem com meia careca e uma cerveja acabada na mão pareceu ler-me o pensamento.
- Pois é. Os gajos não podem fazer
nada a menos que os comissários
apresentem queixa ou os chamem.
Parecia
de malucos. A invasão do Comissariado fora pacífica, sem armas, e os comissários sequestrados não puderam, ou não quiseram, pedir socorro. Ante Sylba não estava lá, por isso, legalemente,
não podia recorrer à DINATE. Talvez não fosse de malucos, talvez fosse genial.
Em
rodapé, na emissão de um dos canais, correu a legenda: A DINATE já está
a caminho da rua Helmut Khol. Pensei que era bluff. O Governo Central Europeu não permitira um banho de
sangue, ainda por cima sem legitimidade de actuação. As
colónias tinham de ser respeitadas
nos seus resquícios de
soberania envergonhada.
Durante
o resto da tarde, e pela noite dentro, viveu-se um clima de ansiedade
e expectativa. Os media e a internet foram dando
notícias de um jogo de surdos. Os jipes da DINATE estabeleceram um
cordão de segurança à volta do edifício da rua Helmut
Kohl, mas os populares dentro do Comissariado não esmoreciam. A certa altura, já toda a gente no café se comportava como amigos ou, pelo menos, conhecidos.
Numa
mesa livre, sentei-me a debicar amendoins e bebi uma cerveja com um casal de engenheiros reformados. Pensei que
ia ouvir a milésima versão da
queda do nível de vida, da pensão reduzida a metade, do racionamento de coisas antes supérfluas.
Enganei-me. A mulher, com os olhos agarrados à televisão e as mão debaixo da mesa , discursava baixinho com se tivesse um duende no colo
-
Oxalá não se rendam.
Seriam um exemplo e nós não
sabemos o que isso é.
O
marido concordava. Se é para
sermos pobres e miseráveis, que o
sejamos por nós. Entendi dizer-lhe que sem a CADE seríamos pior do que pobres, porque , por
exemplo, eles os dois nem as cortadas
reformas manteriam. Foi
então que a mulher , já não me
recordo do nome, Ana, ou Anabela, ou Bela, me perguntou em que país é que eu vivia.
- Se a alternativa entre ser uma colónia pobre ou uma nação miserável
não se coloca, como raio lê você o século
vinte ? Em que somos diferentes
da Indochina ou da Rodésia?
Não
a contrariei, porque seria cruel. A diferença para as nações emergentes, de que ela continuou a dar-me exemplos, era que nós já experimentáramos o conforto e o desenvolvimento. Pior, fomos
aculturados por mais do que um império, habituámo-nos a um sentimento de
pertença a uma Europa rica. A teoria de que não havia nada a perder não funcionava, porque
havia a memória anterior à perda e
essa memória , a dos bons tempos, funcionava como uma cola que nos agarrava ao
passado. O medo de romper era essa
cola. O meu pensamento voltou a ser lido e ela voltou à carga como um dentista tenaz.
- É verdade que ainda temos alguma coisa
e também é verdade que nos lembramos de ter muita coisa. Mas você pensa que um povo é uma caixa registadora?
Que não tem orgulho?
Pensava,
mas não lho disse. A ausência de orgulho
não deve ser sublinhada.
Fui à rua fumar um cigarro, afastando-me um pedaço da gente que se
apinhava à entrada. Quando
regressava, estava um rapaz a
chamar as pessoas. Havia um autocarro para Marília, íamos para uma manifestação.
Recuei,
já fora tempo de manifestações, muitas manifestações. Não deram em nada, pura
energia desperdiçada. Uma mulher
percebeu a minha recusa e tive de me explicar.
-
Não adianta nada...
A
mulher, gorducha, enfiada num fato de treino, desatou aos berros.
-
Este é mordomo!Não quer
ir Olhem este! Está a
espiar-nos o filho da puta! Estás a
espiar-nos, cabrão?
Não
tive tempo de reagir. Quando
pensei nisso já me tinham agarrado. Lembro-me de ver um tipo à minha frente e
de levar uma cabeçada, lembro-me da vozeada e do cenário demosténico no meu campo de visão já bem
turvo. Cai de joelhos e ainda me
ferraram dois ou três pontapés nas costelas. Entrei numa espécie de amok e e acordei sentado no passeio, encostado a uma parede e com sangue na boca. O nariz
doía-me como se mo estivessem a
apertar com um alicate. Depois senti uma frescura fabulosa causada pela água
que alguém meu lado me despejava
sobre a cabeça.
-
Não o posso largar que
você mete-se logo em sarilhos.
Laura
não era uma visão porque eu via tudo desfocado. Ajudou-me a levantar e caminhou comigo. Na
direcção oposta à que tomámos ainda ouvi vozes exaltadas mas mais fracas.
-
Não há autocarro nenhum.
Alguns enfardelaram a trouxa e vão meter-se nos carros para Marília.
Venha comigo.
Levou-me para um um carro. Sentou-me no lugar do pendura e arrancámos. Parou
numa estação de serviço, comprou
álcool e pensos e tratou-me do nariz.
-
Paramos no caminho para
beber um café. Não é conveniente ir ao hospital.
Já
era de noite e adormeci pelo
caminho. Quando acordei rodávamos
em plena autoestrada. Um luxo ao qual não estava habituado. Naquele
momento era-me indiferente. Parámos numa área de serviço e engoli dois cafés
oferecidos por Laura. Fui actualizado sobre a rua Helmut Kohl. A
DINATE cercara a sede do
Comissariado e os activistas, ou lá o que eram, ficaram lá dentro. As comunicações via
telemóvel não acrescentavam muito. Era de novo um impasse. Laura não me
explicou como me encontrou naquela praça em Farvira.
-Andamos
por todo o lado, sabemos tudo. Você agora é dos nossos.
Grogue
como me sentia , não argumentei. À medida que engolíamos os quilómetros, de olhos fechados,
para evitar conversas, fui pensando. Já era a segunda vez que
Laura e os amigos me encontravam e eu não era assim tão estúpido. Pensei
ser impossível um grupo de
lunáticos estar tão bem informado. Por outro lado, esse interesse em alguém como eu ultrapassava-me.
Claro que tinham arregimentado mais gente. Em Kara,
durante a conversa mole, Piter
disse-me que havia outros
sectores. Uma espécie de células,
para usar uma linguagem do passado. Fosse como fosse, eu não valia nada,
era incompreensível tamanho
desvelo.
Devíamos
estar a pouco mais de dez
quilometros de Marília quando liguei o rádio do carro. Passados uns minutos, o
boletim informativo abriu com a reportagem sobre a rua Kohl, mas logo a seguir
as palavras paralisaram-me. Tinham sido detidos elementos terroristas, em
Farvira, que planeavam um atentado contra uma alta figura da administração da
CADE. A operação fora bem sucedida
graças a elementos infiltrados. Diversa documentação,
computadores pessoais e
telemóveis apreendidos permitiriam
mais detenções num futuro breve. Existiria uma rede que se preparava para executar um número indeterminado de de pessoas ligados à CADE.
Olhei
para Laura que permanecia
impassível, com as mãos no volante, sem um sinal de tensão no perfil que
eu podia examinar.
-
Abra o porta-luvas. Tem
uma pasta vermelha. É para si.