terça-feira, 12 de fevereiro de 2013


                                                    IX


Pegou-me pelo braço e pediu-me que a  acompanhasse. Chamava-se  Laura  e queria falar comigo, coisa que eu já tinha percebido. A ideia era andarmos  até ao carro  que estava estacionado no lado oposto ao da estação.  Achei melhor ficar calado, porque nada tinha para dizer. Os anos  de inacção e  rotina depressiva tiraram-me  a capacidade de reagir. Não sabia  a  língua, não sabia a inflexão certa da voz. Chegámos ao carro, afinal já fora  do parque de estacionamento da estação. Entrámos para  o  japonês, ou coreano, não me recordo,  preto e  bem usado, e as explicações começaram:
     -  Saber o seu número  foi simples. Temos um amigo no GASO de   Setraga. Agora vamos conhecer uma  pessoas, ‘tá bem?

Arrancou suavemente como uma amiga que vem buscar um amigo.  Resumindo, Laura e uns amigos tinham organizado uma base de dados  sobre pessoas que pudessem fazer qualquer coisa  de diferente. Tudo muito simples, muito natural. Excepto saberem que  eu estava num comboio em direcção a Marília:
        -Falámos  hoje de manhã com a sua mulher.
Também sabiam o número dela através  dos registos do GASO. Muita coisa sabiam estes amigos.  Ela guiava concentrada mas não na condução. Dir-se-ia que me observava através da orelha direita, pequenina  e bem desenhada, deixada livre pelo cabelo apanhado. Um cabelo preto mortal, a pele bem tratada, lábios  grossos, dedos  finos   e longos. Não sei por que bufido do meu cérebro, lembrei-me que fosse médica.
- Fui anestesista. Há muito tempo.





A viagem continuou. Passámos  Kara,  com os seus prédios miseráveis de janelas e varandas pequeninas,  ruas largas, e agora inúteis,  e passeios esburacados. Reparei nas pessoas que se equilibravam nas bermas e lembro-me de ter pensado  como talvez  pouco tivessse mudado. Antes da Grande Crise  conhecera terras assim,  baldeadas à ilharga das grande cidades, onde não parecia haver tempo para mais nada a não ser trabalhar comer e dormir. Era como se agora fosse o mesmo mas em versão emagrecida.
A estrada  ficou rural de repente e o trânsito era  insignificante. Resolvi que era tempo.
       -   Vamos lá ver. O que é que querem de mim?
Explicou-me que não explicava. O grupo  debatia em conjunto. Não tinham a certeza se eu aceitava o convite. Ainda faltava um bocado, por isso tentei recuperar informação que me tivesse escapado.  Debate? A política estava reduzida às reuniões pomposas  dos congressos e às ameaças da RENA e do NOSSO.  O país estava estrangulado, semi-deserto e as pessoas queriam apenas sobreviver. Talvez fosse mais um grupo de lunáticos enrodilhados em discussões geopolíticas e doutrinárias. O que eu não percebia era o que raio poderiam querer de mim.  Sim, já tinha sido um bocadinho de tudo – escritor (de artigos), jornalista, blogger – mas agora era um técnico  de educação a meio tempo, desatento profissional,  sem porto de abrigo e sem norte. E velho.
      -    Cinquenta anos não é velho.
Ela disse isto com o entusiasmo do  homem da bilheteira do estádio a vender um jogo das reservas. Abrandou junto do portão de uma quinta, seguiu por uma vereda e estacionou no pátio de uma casa de campo com muito bom ar. Branca, com heras verdes e umas escadinhas que davam acesso à porta , garned e castanha,  onde estavam à minha espera dois homens. Também bem vestidos como mordomos, cabelo curto, um já calvo e entroncado, o outro loirito e magro, ou talvez só alto. Agradeceram a minha vinda, cumprimentaram-me com um aperto de mão amigável e entrámos para um pequeno corredor. Daí fomos para uma grande sala cheia de livros, com uma lareira e sofás  luxuosos. O calvo entroncado chamava-se Piter, o louro respondia  pelo  nome de António. Sentámo-nos todos, eu num individual, os dois  homens num maior.    Laura ficou de pé, atrás de mim,  e passou-me um cinzeiro, o que lhe ficou muito bem. O  entroncado começou:
-       Comos sabe, estamos num impasse.
Respondi que talvez. Não ligou.
-       O país já não existe. Morreu. Isto tem de ser percebido não importa a propaganda da CADE, do Governo Europeu e de todas as nossas  excrescências políticas, sejam elas os congressos, os radicais ou outros.
Acendi um cigarro sob o olhar aprovador de Laura e um leve arquear de sobrancelhas do louro. Piter continuou o discurso com os olhos pequeninos cravados no tecto, num gesto teatral. Percebia-se  que ensaiado mil vezes.
-       Já não se trata de recuperar a nação, a alma, a dignidade. Trata-se de  fazer outro país.



sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

                                                                          VIII





Kara, a última estação decente antes de Marília, era uma  zona suburbana, ainda ruralizada. A bem dizer, de novo ruralizada. Nos anos da Grande Crise ( agora já nem se podia falar de crise, porque  não havia horizonte de mudança), alguns especialistas falaram do regresso à terra.  Lembro-me de sorrir, como é de bom tom diante da falsa  ingenuidade.  A terra  de que falavam seria a da produção agrícola, uma terra desconhecida no país, onde  a agricultura foi  quase sempre de subsistência. ou de negócios com subsídios europeus). A pouca que não o era apenas suportou a concorrência dos grandes espaços deste mundo graças a subsídios, vonatde metálica  e ajudas. O regresso à terra era, no fundo, o regresso à pobreza.




Parecia um enredo de um fime simplório de espionagem .  Usei o pouco saldo que tinha no aparelho para  enviar um  email para os meus dois contactos. Combinei com ambos às seis  da tarde, num café que conhecia bem, perto de uma praça enxameada de pensões  baratas mesmo no centro de Marília. Teria tempo para me instalar e pensar. Depois decidi enviar outra mensagem a anular a primeira. Queria  ficar livre para decidir  sobre o telefonema e o provável encontro.
O resto da viagem , com paragens intermináveis, passei-o ansioso e aparvalhado com chamada do homem desconhecido. Não com  a chamada em si , mas com o facto de o desconhecido  saber o meu número e o meu  nome.  Para resolver o assunto  talvez valesse a pena   encontrar-me com um tipo que nem sabia se era gordo ou magro, baixo ou alto, mas  se saísse em Kara teria depois de comprar novo bilhete para o centro de Marília. A curiosidade era  um mau negócio.




Nem dei pela paisagem verde-encardida, os montes semeados de pequenas casas, os apeadeiros  baços e descuidados. Num deles, acordei da inquietação porque senti o cheiro de castanhas assadas quando estiquei as pernas à porta da carruagem.  O homem estava na outra ponta da plataforma e só tinha um cliente, uma mulher bem arranjada com duas crianças . Soube-me bem aquele pedaço de familiariedade, ou de memória desarranjada. Depois  da mulher e das crianças  se terem afastado, vi o homem sozinho durante  o resto do tempo em que o comboio esteve parado.  Mais ninguém  lhe comprou castanhas e o vendedor devia ser estúpido ou desconhecia o cálculo de probabilidades. Quando penso estes pensamentos de plástico sinto-me idiota, claro. Esta raiva contra o homem das castanhas, caríssimas e um luxo dispensável, era  uma raiva importada de um país  que já não existia. Poucos podiam dar-se ao luxo de ter luxos.







A última estação antes de Kara era um apeadeiro em  Rio Seco, uma terriola  agrícola e um antigo  dormitório.do tempo em que havia trabalho em Marília. Tinha de decidir. Agora sei-o, na altura  enganei-me com dúvidas. Se tinha largado tudo era porque não estava disposto a ter uma vida, ou o que restava dela, normal. Nenhum sentimento romântico  ou de  entrega a uma causa  ( até porque a desconhecia),  como já expliquei e é justo que saibam. Também não se tratava, preciso de justificar, do cultuar da posição do anti-herói  desprendido. Como muita gente, apenas pretendia desistir de três anos de prisão moral.
 Ainda guardo um pedaço de um texto que escrevi, no Natal de 2016, para um pequeno jornal irregular  de Setraga:


“ (…)  Viver com que se tem, se se tiver pouco, é viver pouco.  Viver com o que se  se tem, se não se tiver nada, não é viver. A propaganda diz que pouco é melhor do que nada, mas não é esse o problema.
Saber que nunca teremos mais do que pouco, ou nada, obriga-nos a demitir o tempo. E o tempo, já nem digo o futuro, é o que nos devia salvar do pouco, ou do nada, que temos. Esse tempo não existe”.

 Como o meu amigo professor  me avisara, este género de lamentação era falinha mansa. O problema é que os radicais, da RENA ( Resistência Nacional) ou do NOSSO ( Novo Socialismo), ofereciam apenas caos. Agarrados aos velhos sonhos, marxistas e leninistas,  reciclados nos Zizeks e Badious, diziam às pessoas para  erguer barricadas. Ninguém lhes ligava, o que quase me fazia  ficar do lado deles.  Depressa me  passava  a empatia, porque  os radicais persistiam em desprezar as dificuldades das pessoas. Os abonados não ardiam no fogo revolucionário: tinham filhos, dívidas e alguns  bens salvos da ressaca da Grande Crise. Na  mistificação comunista, as pessoas, os explorados, são meios e não fins. A verdade é que numa coisa os radicais estavam certos: o tempo, o tal tempo,  esgotava-se.





Sentia-se, em pequenos detalhes, uma espécie  de desespero diferente. No jornal que  li na estação, bem como no que fui vendo nos minutos esquecidos dos telejornais, apareciam  gotas de  protesto. Em Vora, a apenas cinquenta  quilómetros de Marília,  um grupo de pessoas , cerca de quarenta,  sem organização política conhecida ,  destruiu um gabinete do GASO. O que  me chamou  a atenção , como a muita gente, suponho, foi o facto de a destruição ter sido metódica e ordenada. Não houve gritos, palavras de ordem ou balbúrdia. As pessoas  entraram no edifício, onde também funcionava uma pequena antena de saúde, em silêncio. Manietaram os dois seguranças regaram as salas com um qualquer liquído inflamável e pegaram fogo ao circo. Depois abandonaram o local como se tivessem ido tratar de assuntos administrativos, em boa ordem e calma. Se tivessem ficado tinham sido presos. Não houve  nenhuma mensagem encaixilhada num manifesto de protesto nem se podia tirar grandes conclusões do alvo: quatro ou cinco gabinetes médicos, a farmácia  necessária, uns tantos computadores e algum material médico.
 Durante os anos que antederam a vinda da CADE,  o estupor vingou e a raiva era  mecânica e com hora marcada, mas nos últimos meses alguma coisa estava a mudar. Talvez a chegada da CADE e a aniquilação das instituições tivesse despertado um reflexo, como o esticar das patas dos elefante de morrer. Coisa, coisas, as minhas palavras  eram tão vagas e coisificadas  como o meu pensamento.  O comboio parou em Kara às 11.31h. É difícil esquecer, porque fui verificando  a hora no telemovel.  Umas dez vezes.
Era ridículo. Não vivíamos  sob o terror, mas sentia-me conspirativo. Suponho que é da natureza humana. Até o mais flácido dos porteiros se imagina conspirativo quando  divulga um pequeno segredo dos poderosos. Decidi  sair do comboio e esperar pelo  meu interlocutor misterioso.  A estação tinha o movimento normal, nestes dias sombrios e  excepcionais, de um apeadeiro suburbano àquela hora.  Alguns trabalhadores que interromperam, não se sabe porquê,  o pouco trabalho que faziam  em Marília,  um ou outro casal  de velhotes. em marcha fúnebre. Ninguém parecia esperar-me e, claro, quem esperava era eu.




Andei uns metros, fingi consultar  os horários no écran sujo  do monitor  interactivo, pousei  a mochila e acendi  um cigarro. Nada. Fumei o cigarro já num estado  de descontracção. O ar estava molhado e o comboio partiu.  A ligação para Marília era só às duas da tarde, tinha muito tempo para pensar. Como dizia o  meu filho, era de borla. Pus-me a andar pela plataforma, contornei o edifício principal da estação e vi-me num terreiro cheio de lixo. Ao fundo, uma casinhota , um cão preso a um abrigo e um carro velho e desconjuntado.  O terreiro abria para uma ravina ampla, talvez de uns cem metros de profundidade e podia ver  a planície a seguir. Casas, hortas e oliveiras esparsas do meu lado esquerdo, malha urbana e mal amanhada do meu lado direito, atravessada por uma estrada desabitada. 




Quem escolheria um ermo destes  para conspirar? É certo que também podia ver restos de pequenas indústrias – barracões, edifícios que pareciam antigas oficinas, armazéns fechados, o que era irrelevante . Fosse como fosse,  a acção estava nas cidades e eu não era um oposicionista na clandestinidade   do antigamente. Não tinha a coragem nem o motivo.
 Voltei para trás , na direcção da estação, à procura do bar para um café, caro e  essencial, quando me cruzei com uma mulher bem vestida, alta e com o cabelo apanhado que lhe dava um ar ainda mais altivo. Nem dois  metros depois ouvi chamar:
-       Gil? Gil Gose?
Virei-me e a minha expressão deve ter acelerado as explicações:
-       Fomos nós que o contactámos.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

                                                                 VII




E era tudo o que me sobrava depois de 50 anos de vida. Bem, isso  e algumas rugas, um langor infeccioso e um desinteresse galopante.  Se me tivessem dito, há dez anos, que ia fazer isto, acreditava. Toda a gente  leva à pendura esta fantasia. O que me teria feito rir era a causa.
Tinha um destino:  Marília, ainda a capital do país.  Ao longo dos últimos meses também fui participando em algumas discussões em rede, evitando os alucinados que queriam fazer revoluções e reunir falanges, serpenteando  pelas alternativas de exércitos de um homem só. Esta gente, que  funcionava, como disse, em circuito fechado, aborrecia-me.  Os mordomos e a CADE ignoravam os rumores  e deixavam a pressão aliviar na rede. Levava  contactos de duas pessoas, nem sabia se homens ou mulheres ou mulheres,  que pareceram menos fantasiosas.
 Não era estranho, numa altura daquela, não ter amigos reais com quem pudesse ir ter.  Os laços foram-se perdendo e não era  situação a única responsável.  Nos últimos  anos, deixei de aparecer - não tinha paciência para suportar lamentos  nem alegria para conversar. Bem, talvez  a situação tivesse acelerado o meu isolamento, mas não o causou. Muitas pessoas ganharam  força com as dificuldades, mas a minha formação estóica derrotava-me. Não esperar nada do dia de amanhã era fácil, mas apreciar e despedir-me  do dia que passou, era impossível. A ditadura do presente, o motor estóico, parecia-me insuportável. Quando mais precisava do estoicismo, não fui capaz.



 Fechei  a porta do apartamento e fui a pé até à estação. Havia um primeiro  comboio da manhã  para Marília e   tinha  tempo. Desci as ruas vendo com olhos diferentes as mesmas casas. Restaurantes e cafés entaipados, várias lojas Delícia: todas iguais, onde se vendia desde  roupa usada a pacotes de leite. De vez em quando passavam bons carros, daqueles que se sabia levar mordomos ou gente a eles  associada. Os mendigos , fossem cegos, paralíticos ou simplesmente esfomeados, não podiam pedir na rua. A CADE organizou  as ZOSRA:  zonas de solidariedade recomendada. Eram geralmente recantos de jardins públicos, becos ou estaleiros abandonados . Os mendigos eram etiquetados e recebiam um cartão de beneficiário de uma determinada ZOSRA.  Se saíssem da circunscrição para ir pedir  nas zonas livres, eram levados para os centros de readaptação funcional ( CEREAL) do GASO local. Passavam a ter de trabalhar  sem salário em troca de duas refeições diárias e um telhado. Os mendigos  não gostavam  dos CEREAL por vários motivos, sendo o principal o tipo de trabalho: em regra, carregar e descarregar camiões  de mercadorias que o GASO  alugava para as tarefas necessárias ( abastecimentos de escolas, hospitais etc)




Setraga era agora uma cidade quieta. Fazia-me  lembrar a que só conhecera  dos livros, das descrições e das fotografias  de meados  do século passado. Antes da Grande Crise,  há apenas  meia dúzia de anos, estas mesmas ruas, estas mesmíssimas ruas, passeios e praças, barulhentas e opressivas, faziam-me  suspirar pelo sonho de uma casa na serra. Não só sonhos desses pareciam agora  delírios acrisolados , como dava um polegar, ou ambos, para voltar a ouvir e ver o clangor opressivo.
Cheguei à estação como um soldado desmobilizado, com a mochila às costas e a cabeça pesada. Comprei o bilhete e um jornal. Escolhi o Esperança, um diário do lóbi da CADE.  Sentei-me num banco e folhei-o. Gostava  de ver os nomes dos colunistas. Apreciar as letras e o asterisco que, repetido  em baixo, indicava a profissão do autor. Aprende-se bastante com a memória dos asteriscos. Muitos eram antigos patriotas que afinal nos convenciam, com números e fontes seguras, de que não havia outro caminho senão prosperar a longo prazo sob a CADE.
Um artigo de um emigrado, agora director numa grande empresa chinesa, explicava que o país tinha de ser paciente. Achei  infantil  o cliché China-paciência, mas a invectiva  fez-me pensar. Era aceitável  ser paciente com um ordenado de milhares de dólares e motorista. Por cá,  a  diferença entre a paciência  e  a resignação era  fininha.  A amnésia geral servia como uma luva aos antigos patriotas. As pessoas tinham deixado de discutir culpa e  culpados, o que nem era necessariamente mau, por isso muitos antigos patriotas puderam reciclar o discurso.







Os meus companheiros de viagem reuniram-se aos poucos na plataforma. Não era necessário ser muito observador para distinguir dois grupos. O dos abonados, que  incluía duas mulheres, um casal e três homens,  exibiam   roupas de marca já muito usadas, antiquadas mesmo, malas e mochilas, ar de quem foi deslocalizado. O GASO mudava as pessoas de uma cidade para a outra, às vezes  sem mais  antecedência do que dois ou três dias.  O lema era “ Onde está o trabalho,   estão as  pessoas”.  Uma amiga de Rita teve um bebé e recusou o abono do GASO para ir trabalhar no norte do país, a quase duzentos quilómetros da sua casa de Setraga. O marido deixou-a, os amigos  reprovaram-lhe  não só a recusa, que acharam obscena, como a decisão de ter tido  a criança. Hoje vive de esmolas.
No grupo dos mordomos  bispei um casal e  dois  homens. Bem vestidos, ela com uma mala de mão elegante, eles com pequenos  sacos de viagem a tiracolo, relógios  imponentes nos pulsos . Levavam jornais e falavam ao telemóvel. Lembro-me vagamente de que havia mais dois ou três homens inclassificáveis, talvez tipos da DINATE à civil, talvez apenas inclassificáveis.
 Como era habitual, o comboio ia quase vazio. As pessoas  não tinham grandes motivos para se deslocarem de um sítio para o outro, porque, apesar do slogan do GASO, mesmo o trabalho  para os abonados era pouco e os bilhetes de comboios eram mais caros do que os das camionetas. Pousei a mochila , recostei-me e gozei a privacidade.  O comboio arrancou e, ao fim de alguns quilómetros,  já só via mato, floresta e pequenas  povoações.
Não tinham decorrido mais de vinte  minutos quando o  toque do telemóvel me espantou. Não recebia chamadas a não ser dos meus filhos, e poucas, ou da Rita, o que naquele momento  era  improvável. Uma voz de homem chamou-me pelo nome e disse que me esperava na estação de Kara. E desligou.



quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

                                                              VI


 
O Congresso Nacional não era  uma organização de hierarquia clássica. Em várias cidades, ligadas  pela pouca tecnologia utilizada (  a queda do poder de compra e  a emigração de gerações mais novas reduziu o número de utilizadores)  e por alguns entusiastas em carne e osso, formaram-se pequenos círculos inspirados pelos nomes mais sonantes de Marília .  Durio, a segunda cidade  do país,  desapareceu politicamente do mapa, se é que alguma vez lá esteve, porque os seus melhores quadros  caíram em desgraça -  viviam em quintarolas minhotas a fazer vinho ou emigraram como executivos bem pagos.
 Em Outubro de 2017 decidi que não podia mais. Os meus filhos tinham partido há quase um ano, ainda a tempo de evitar aproibição  de emigrar .  O João, o mais novo,  para o Canadá, o Miguel para Inglaterra. Eu e a minha mulher já só nos tolerávamos e a linguagem resumia-se à troca de informações sobre a vida dos miúdos. Não senti nenhum chamamento, nenhuma inclinação. A verdade foi mais simples:  não podia sair e já não conseguia ficar .





Resolvi deixar tudo no dia  25 de Outubro de 2017. Vivíamos num apartamento mais pequeno, arrendado. Uma sala, um quarto, a casa de banho  e uma cozinha. O anterior, grande e bom,  foi entregue ao banco quando o segundo dos miúdos foi embora, em Julho de 2016, mais coisa menos coisa. O costume adoptado por  casais na nossa situação foi o de partilhar apartamentos. Outros  alugavam quartos em casas de velhos sozinhos. Isto era mais do que uma opção, era um dever: não havia a possibilidade de sustentar a hipoteca de uma casa sem salários normais.    Preferimos manter a privacidade, cortando  noutras coisas.  Livros e filmes corriam de mão em mão, os qu epodiam descarregavam o material da internet. Muitas vezes passava na minha antiga rua e olhava para o prédio e para a vida  que se foi.  Em Setraga, como nas cidades  de dimensão razoável, as boas casas não ficaram vazias muito tempo. O pessoal técnico da CADE e os filhos e amigos  dos mordomos  treparam por elas  como esquilos.
 Discuti, pela centésima vez,  os termos da minha opção com a Rita, que pouco falou. Se tivesse falado seria para repetir o habitual:  Melhores tempos virão, tens de ter paciência, não podes ser assim.  O meu amigo acusava-me de inacção,  a minha mulher apontava-me um feitio inconformado. Talvez não inconformado, talvez fraco e infantil. Talvez ambos tivessem razão, talvez eu rosnasse em casa mas fosse dócil e alheado na rua. Talvez nada.
A  obsessão da Rita  com as vidas dos miúdos, com o futuro dos miudos e com o pouco trabalho que ainda tinha, preenchia-a. Nessa manhã, enquanto arrumava  a mochila, coisa que nem em adolescente  usei, senti-a na casa de banho. Quando  fui buscar a tesoura da barba, cruzámo-nos  e quase chocámos, ou chocámos mesmo,  não sei. Quando  não há distância crítica, aquela que faz com que uma pessoa, se desvie de outra , já não somos pessoas. Nem animais. Isto pode parecer um psicodrama, mas naquela altura era  a minha vida , um bom pedaço  da minha vida, que acabava sem clangor.




Tanto se lhe dava se eu ficava ou se ia. Pela minha parte, só me preocupava  com a hipótese de conseguir fazer alguma coisa. Como não podia  ir ter com os miúdos e não aguentava mais  a simulação de trabalho que tinha nem o ar que respirava em Setraga, sentia-me colado a ela.  Assim foi  melhor, as separações só são difíceis quando ainda há distância.
Ela disse-me adeus quando saiu, eu respondi, rígido, enquanto revi papeladas  avulsas  em cima da mesa da  sala.  Volto muitas vezes a esta cena, uma manhã molhada e abafada, uma despedida sem um pingo de sangue. Tento  saber se o que nos aconteceu foi  causado  pelo estado das coisas  ou se também teria acontecido se as nossas vidas  se tivessem desenrolado  como seria normal. Se tivéssemos as nossas profissões, a nossa casa, os nossos filhos  em nossa  casa, ou mais perto dela e as vidas deles entrelaçadas  nas nossas. A única conclusão a que chego  é que mesmo em épocas excepcionais  nos dedicamos  a análises vulgares.





Abandonar Rita, Setraga e o meu trabalho,  foi  abandonar algo que, por alguma razão, apodreceu. Não me custava de forma especial, nem tinha sequer o prazer  suspeito de abandonar. O país passara  a conjugar  o verbo  com eficiência. Abandonava-se a  cidade  onde se vivia, o próprio país ( antes da proibição da CADE) , qualquer trabalho monótono e  disparatado. O sentimento de abandono assentou na comunidade. É necessário recordar que os que ficaram foram os que não puderam sair.
Uns dias antes, compareci na delegação  do GASO . Tinham-me colocado numa escola primária  a dar apoio a crianças com dificuldades de aprendizagem. Havia cada vez menos crianças, por isso havia cada vez menos trabalho Trabalhava duas horas por dia, sempre de tarde, e ganhava 400 euros. Limitava-me  a ler com os garotos, a rever a tabuada e  a fazer macaquices no computador. Ninguém  se importava se eu fazia bem o trabalho. Eu também não. Aquele era o meu trabalho, se bem que eu já não soubesse qual era o meu trabalho. A situação fez-me o que fez a muita gente: obrigo  a fazer o que fosse preciso. Aqueles garotos teriam  um futuro igual ao meu, a trabalhar para o GASO,  talvez a dar aulas de apoio aos futuros  abonados.







Fui ao gabinete do vice-director, um lambe-botas  de apelido Vedia ( nunca cheguei a saber o primeiro nome), que, nos bons tempos, foi director regional  da educação, nomeado pelo partido local, tendo sucedido a um aparelhista semelhante, mas de outra filiação partidária. Quando os partidos  deram de si, corria nas tertúlias políticas a ideia de que, pelo menos, acabava o carreirismo. Engano puro. Na educação, por exemplo,  continuaram a ser nomeados indvíduos que julgavam que paideia era um palavrão. 
A secretária não estava no seu posto e por isso bati logo à porta. Mandou-me entrar. Sem me sentar, cumprimentei-o e disse-lhe que  me ia embora.
       - Não é assim tão simples .
Olhei  para  ele e arrependi-me da minha estupidez. Tinha pensado nisso.
Devia  ter ido embora sem  dizer nada.  Enquanto ele arengava sobre responsabilidade, compromisso com o futuro e outras porcarias,  revi a táctica
-       Tenho a declaração de desobrigação pronta. Enviei-a por correio electrónico e  quero saber onde deixo a versão em papel.  Não sou obrigado  a ficar.
Foi como se estivesse  a falar da metereologia. Não me ligou patavina e continuou a dizer que não, que não era assim, que depois falaríamos. E sublinhou:
-       Sabe que perde o subsídio de integração, não sabe? E que o perde por um perído  nunca inferior a cinco anos? Ou seja, ou vai roubar ou trabalhará de borla num qualquer CEREAL.

 Os CEREAL, os centros de readaptação funcional, eram agências  da CADE  que distribuiam  tarefas aos que que  não tinham nenhuma. As pessoas eram alojadas em antigas escolas, instalações de empresas desactivadas, enfim, o que estivesse  abandonado. Agradeci-lhe a projecção, larguei o papel da demissão em cima da mesa  e fui-me embora
Desde que não me chateassem, estava-me nas tintas. O que ganhava impedia-me de viver fora  do  sufoco da nova regência.  No apartamento que ia deixar já não tinha os meus livros, só não vendera  uma vintena, dormia acordado a ver televisão e  alimentava-me dos MONUCO  ( Módulos  de Nutrição Compensada) . Os MONUCO, os moluscos, como lhes chamavam, eram iguais em todo o lado.  Sete almoços e sete jantares, individuais, cada um com uma sopa de pacote, um pedaço de peixe ou carne, refrigerados, uma peça de fruta, uma embalagem de arroz ou batatas ( às vezes grão  ou feijão) pré –cozinhada.
Fosse como fosse, a ida ao GASO não tinha alterado nada e aquela manhã de Outubro cumpriu  a sua tarefa. Mochila às costas com duas mudas de roupa, dois pacotes de bolachas,   tesoura da barba, um sabonete, a escova de dentes, uma toalha e um tubo de vitaminas.  Numa bolsa  lateral enfiei  duas folhas de papel. Uma era um pedaço de uma mensagem que o meu filho mais velho, o João,  me tinha enviado há uns meses e que eu não aceitava nem compreendia:

  Claro que não volto. A mamã  pensa que sim, mas não. Impossível. Tu é que tens de dar apoio e trabalhar e viver  a tua
vida até que a situação se resolva. Não estás preso, só não podes sair do país. Aí podes fazer o que quiseres, tens muito tempo livre e pensar não custa dinheiro”. 

Precisei  de guardar estas palavras para o dia em que as pudesse  aceitar e compreender. Como muitos da sua idade, o João dividia o país. Uma metade, a que ele deixou para trás, feita pela  geração dos pais e dos avós, rançosa  e culpada. A outra, que haveria de ser feita pela geração dele, à distância, espalhada pela  Europa,  Brasil,  América, Angola, supensa e adiada. Não  o podia criticar nem aconselhar, o que era mais grave. Uma vez perguntei-lhe como era isso de fazer um país  do outro lado do mar, do outro lado da fronteira. Respondeu-me que  não sabia, mas que se os da  sua geração tivessem sucesso, podiam sempre regressar e se falhassem não prejudicariam os que  ficaram nem as gerações seguintes. O despeito estava a caminho de se tornar uma  religião monoteísta.




sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

                                                                   V




Um dos primeiros congressistas que conheci, Pino Correa, fora um famoso ex- administrador de  empresas públicas,  ex-político e ex-ministro  dos tempos de fartura. Estava já na casa dos setenta  e sabia muito. Começara no partido comunista, a seguir à revolução do século passado, e depois  aburguesou-se, ou deixou de disfarçar. Esteve no governo e acabou barão da indústria.  Agora era patriota. Gabava-se de ser um indivíduo   responsável  e era  uma das figuras principais da direcção do Congresso Nacional. À boca cheia dizia-se que  ficou para trás para colocar amigos em vários cargos da Europa rica. A idade, a saúde e assuntos familiares desaconselharam a emigração e assim ia recebendo comissões chorudas e favores de toda  a ordem.
Conheci-o em 2015, por acaso, numa visita de trabalho que fez a Setraga. Eu estava desempregado e aguardava colocação através do GASO local, mas  colaborava com  um jornal on-line, que teve vida curta,   com um nome pomposo, o Dignidade.  Trabalhávamos num pequeno gabinete dividido ao meio  por um biombo de plástico transparente, o que me permitia  olhar com saudade as pernas  até ao pescoço,  crédito a Hemingway, de Sofia, a grande animadora do Dignidade
Pino Correa  estivera de manhã numa reunião privada com quadros do Congresso, num hotel, e depois do almoço organizou-se uma conversa informal com cidadãos noutro hotel da cidade, mais barato ( oficialmente, mais prático). O pavor à cultura partidária obrigava a estas novas estratégias, mesmo que toda  a gente soubesse que Correa tinha vindo apenas para  a reunião privada da manhã e para um jantar de angariação de fundos, que se realizaria à noite.
 À hora marcada dirigi-me  ao Hotel Miranda. Estava curioso para saber quantos eram os cidadãos interessados nas teses de Correa.  À porta do hotel, alguns homens das televisões e muitos mordomos de Setraga. Aguardei e depois de entrar passeei por entre os mordomos de cálice na mão e barrigas apertadas nos fatos decentes. Já havia fotógrafos que captavam as poses dos mordomos e das suas senhoras e até  de um mordomo com o seu senhor.
 Era assim em Setraga desde o tempo anterior à Grande Crise. Uma corporação em circuito fechado, medíocre sob todos os ponto de vista. Os políticos quase analfabetos e sempre carreiristas, um punhado de gente da cultura  que escrevia livros horríveis  e poemas infantis,  mas tudo amigo do seu amigo. E dos croquetes. Fora deste círculo, a cidade teve ivda antes da Grande Crise e era uma vida que não se aperaltava para as secções sociais dos jornais locais. Nesses tempos havia teatro, escrita, fotografia, música. Agora só restavam os inúteis.
Já na sala, Correa discorria sobre a necessidade de todos fazermos  a nossa parte, e outras banalidades  repisadas, quando, vindo das últimas filas, um homem se levantou e pediu para colocar uma questão. Um dos secretários da reunião avisou logo que era altamente irregular porque o orador não tinha terminado. O homem, magro, dos seus sessenta anos, quase careca, insistiu  com uma voz doce e suplicante. A mão sapuda de Correa agarrou o microfone.
-      Faça o favor, faça o favor.
 O homem pigarreou e a sala riu-se nervosamente do nervosismo do espontâneo, mas foi com calma que o sujeito fez o seu papel.
     - Queria saber se o dr. Correa, acha melhor que o óleo do motor  seja mudado quando está quente ou quando está frio.
      Correa, um profissionalão, não se traiu, mas o secretário desatou aos berros  com o intruso. Muita gente fez o mesmo e num ápice dois seguranças  agarraram-no e expulsaram-no da sala. Levantei-me  e procurei-os nos corredores. Lá encontrei o homem, que refilava com os seguranças, assegurando que sairia pelo seu pé.  Acompanhei-o até à rua. respeitando o seu silêncio.
Já na rua , perguntei-lhe o que quisera  dizer com a história do óleo.
-      Nada de especial, é uma história, uma anedota de filósofos. Quando um anjo desceu sobre uma convenção de sábios,  autorizou uma pergunta, verdade que  em     moldes especiais, mas isso agora não interessa. O que interessa é que os filósofos  não se entenderam e o anjo partiu. Nessa altura, um velho  da última fila repetiu a pergunta que tinha proposto no início.

Tossiu e afastou-se  com pressa, de forma atabalhoada. Quando me virei percebi a causa. Pino Correa estava atrás de mim, sozinho, com um enorme charuto entre  os dedos curtos  e grossos e um sorriso de gatoa das botas. Expliquei-lhe o meu interesse enquanto jornalista ( não era bem um, mas tanto fazia ) e ele sorriu como fazia nos debates de outras eras.
-  A pergunta era sábia. Sobretudo para quem não tem ar de ter automóvel.






quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

                                                                      IV



A acusação do meu amigo era correcta. Pertenci à mole de gente que assistiu, inerme, ao desenrolar  dos acontecimentos. Fui vivendo a minha vida, tentando não perder as minhas coisas nem o meu trabalho.  Agora, à distância, esta necessidade parece-me  infantil. O meu trabalho não era nada, os meus filhos bem longe, Rita ainda mais  longe, mesmo deitando-se ao meu lado todas as noites. A cama era o túmulo do nosso casamento. A acusação era  também extravagante. Não fiz parte de nenhum grupo político, não exerci nenhum cargo, não tinha qualquer relevância. Desinteressei-me de tudo o que me dizia respeito, suponho que numa reacção alinhada com a generalidade das pessoas.
O que o meu amigo queria dizer era que eu poderia  ter feito alguma coisa. Ele fez greve uma ou duas vezes e chegou a ser detido para averiguações pela antiga polícia. Mais nada. Esses tempos não foram românticos, não houve tortura,  gente  atirada de aviões como na Argentina ou chefes maoris  com colecções de cabeças espetadas em estacas. Todos estavam cansados.  Nem ele nem eu imaginávamos o que viria a  acontecer.
A CADE instalou-se com o  vagar do bolor. O país era fácil de administrar. Com  a população reduzida a metade, o Governo Central Europeu limitou-se a enviar os fundos necessários para a sobrevivência mínima das pessoas. O Congresso Nacional tinha um jornal de pequena circulação, dois ou três sítios na internet  e uma sede  em Marília,  no edifício que fora  de uma grande fundação privada. Os seus teóricos  diziam, concordando com os radicais, que Portugal era agora  um gueto. A guetização tornou-se num termo comum, discutido nos cafés, nos autocarros, no metro que ainda funcionava. Como é habitual nos guetos, do de Veneza ao de Varsóvia, a vida corria como se o gueto não conhecesse os seus muros.
O pessoal da CADE tratava os congressistas com cortesia. Diziam que era muito importante o país conservar  um escol político  que fosse capaz de assumir a governação  quando a situação se proporcionasse. Esse escol não podia ser mais diferente - nem mais igual-  ao da  classe política do  tempo anterior à Grande Crise.  Como já não havia partidos nem eleições,  formaram-se dezenas de pequenos congressos, mais ou menos  próximos do Congresso Nacional. A designação  colava bem à ideia antipartidária e pseudo-civilista, que era agora muito bem recebida.A selecção natural funcionou e os congressos que conseguiram reunir a gente mais capaz, leia-se, melhor relacionada,  sobreviveram e cresceram. Esta gente  era, de facto, um escol e os seus melhores atributos eram culturais: os conhecimentos, as cumplicidades, a proximidade de parentesco. Num país pequeno, estes anqueos duravam séculos.
Os abonados – autodesignação irónica dos que trabalhavam para o GASO – classificavam os congressistas de mordomos.  Isto reflectia uma das  diferenças mais  vincadas, mas também  simplistas – que a sociedade  exibiu , em pleno, a partir de 2017. Os mordomos eram pessoas com rendimentos e meios que não foram, por arte  e engenho, sugados  pela Grande Crise. A chegada da CADE permitiu-lhes respirar e manter um razoável nível de vida. Os mordomos  ainda faziam férias, ainda viajavam, enfim, protagonizavam o papel normal da classe média europeia. 



terça-feira, 22 de janeiro de 2013

                                                                    III

 
Hoje é difícil acreditar, mas, nesse tempo, até à chegada da CADE, o país entrou em autogestão. Os últimos recursos disponíveis foram consumidos e novas dívidas foram contraídas, já na perspectiva da intervenção do Governo Central Europeu.
Nos anos anteriores, a partir do início de 2014, os governos  de concentração ( uma antiga designação dos tempos pós-Franco, em Espanha) sucederam-se em carrossel. Cada primeiro-ministro apostava em vencer a crise e apelava ao sentimento nacional. O estado de estupor era tal que as pessoas não chegaram a revoltar-se , salvo algumas escramuças . O mercado negro  fez a sua demonstração de força e a válvula de escape foi a emigração em massa. O país foi encolhendo: hospitais, escolas, empresas, serviços. Os que ficaram foram os que não podiam, por um motivo ou outro, sair.  Constituiram o que , mais tarde, seria definido pelos sectores radicais, de  guetizados, presos no gueto.
Até á chegada da CADE, o tempo não correu: saltou. Cada empréstimo, cada corte ou  cada família, que deixavam um velho ou crianças para trás,  marcava o ritmo sobressaltado. De certa forma, gerou-se um espírito de  pelotão de fuzilamento, porque menos gente significava menor aperto, os empréstimos  permitiam o mínimo de normalidade, os cortes já não impressionavam ninguém. Os saltos autorizavam uma espécie de ansiedade, de curiosidade doentia sobre o que  seria o fim.
 Em Julho,  Jules Bomba, no editorial de um prestigiado semanário, sintetizava o sentimento da população mais instruída. Guardei o recorte de velho papel:


“ Acabou. Do país ficou o território, as casas e as memórias. Foi-se tudo o que construímos e tudo o que desperdiçámos. Agora resta-nos viver a pão  e laranjas, conquanto que haja laranjas”.

Bomba, um jovem assistente universitário de direito, tinha sido comentador televisivo e colunista durante os anos da derrocada. A sua cara de doninha e opiniões firmíssimas começaram a ser familiares.  Relacionou-se com as  figuras do poder até à altura de cortar os laços. Depois ficou mais um coveiro.
É impossível sumariar todos aspectos da vida do país no início do Outono de 2017. Quem  pegasse no carro, com a gasolina a vinte euros , numa  segunda-feira de manhã, cuidaria de passear  num antigo  sábado modorrento. Estranharia, no entanto, o lixo amontoado em redor dos contentores sufocados e as novas viaturas da força anti-motim da DINATE. Este corpo policial foi constituído agrupando elementos ainda lúcidos das antigas polícias e forças armadas, combinando-os com elementos trazidos pela CADE. Circulavam em SUV’s pretos e detinham quaisquer arruaceiros ou manifestantes não autorizados. Aos  poucos, a calma regressou.
A viagem, suponhamos ,  de Marília a Setraga, onde eu vivia, far-se-ia em auto-estradas quase desertas. Ao contrário, se o viajante optasse pelas estradas secundárias, mergulharia em infindáveis comboios de carros, camionetas, motos e bicicletas, mas apenas em algumas alturas do dia. Não havia  muita vida, estava era concentrada em determinados períodos. Mantendo-se na autoestrada, saíria numa Luzia com metade das faculdades
 encerradas.  Muitos  dos estudantes conseguiram sair do país antes da CADE, outros regressaram às suas terras onde se amontoaram com desistentes de muitas das universidades de cidades mais pequenas. Nesse Outono, creio que na terceira semana de Setembro, encontrei um amigo   que ainda era professor na universidade em Luzia. Estava de passagem por Setraga. Não o via  há um ano, comunicávamos raramente  por email, fiquei espantado. Calmo por natureza, parecia nessa tarde um cão de combate.
     -  Já viste? Já viste  no que deu a vossa mania de paninhos quentes? De que te serve isso agora? Querias paz e essa merdas para quê?
Deixei-o falar,  os olhos  de canário, nervosos, a voz rosnada. Era um sentimento comum a uma elite  intelectual, angustiada e negada. Pior do que o empobrecimento e  a humilhação, esta elite lamentava a perda de influência. Os melhores alunos tinham partido, os media não queriam dar a palavra  a juristas, filósofos ou escritores. Não tinham nada para dizer, pouco para fazer e, agora, sítio nenhum para onde ir. As redes sociais, tão populares antes da Grande Crise, eram agora inutéis: já pouca gente tinha acesso aos dispositivos electrónicos, ou paciência para eles. Uma minoria ainda trocava textos furiosos em circuito fechado, cheguei a participar, meio distraído, nessas arenas, mas sem resultado  prático. Os media não os ampliavam, antes pelo contrário: ignoravam-nos. 
Os principais  jornais e canais televisivos continuavam , como antes da Grande Crise, centrados na pequena vida da capital,  Marília. Ainda existia um círculo de beau monde  provinciano, que incluia vedetas de TV, humoristas do regime e analistas políticos pagos para acalmar as massas. Estes eram muito importantes, porque,  ao lado da pobreza generalizada,  continuavam a existir salários principescos pagos a mordomos que administravam  um punhado de empresas públicas que a CADE deixou  ficar. Era necessário um trabalho de linguagem para que  a temperatura não aumentasse. A luta“contra a  anarquia”, contra a “inveja social”  e contra  a “dissolução da coumunidade” faziam parte desse léxico.